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A Canção da nova Era, por R.R. Oliver

Atualizado: 1 de set. de 2022


Colagem digital produzida por Filipo Brazilliano

São Paulo, final de uma tarde de verão. Um homem caminha pela Av. Paulista, sentido Consolação. De repente, um flash de luz. Uma bola de fogo cruza o céu caindo em direção à Terra, causando pânico, destruição, o fim do mundo. A história poderia ter sido assim. Mas foi muito, muito pior.


Eu me lembro da primeira vez que me deparei com eles. Era meu horário de almoço, no dia 25 de dezembro. O suporte de TI nunca folga… Procurava um lugar para comer. Tempos difíceis, muitas lojas abertas, poucos restaurantes. Atraído pelo meu próprio reflexo, parei em frente uma vitrine e, enquanto me ocupava de ajeitar a postura, a camisa e o cabelo, os vi passando atrás de mim. Era um grupo de cinco, vestindo túnicas amarelas. Pareciam aquelas capas de chuva do desenho do pica-pau nas cataratas.


Cheguei a pensar que era alguma ação de marketing, um flash mob, ou até algum novo movimento político. Foi assim mesmo, do nada! Segui observando de longe. Abordaram desconhecidos, moradores de rua, qualquer um que cruzasse seu caminho. O grupo se juntou com mais meia dúzia na esquina da Augusta, todos vestidos iguais, e começaram a bradar a chegada da "nova era".


Pregação não é a minha praia. Continuei minha saga em busca de um prato feito e depois voltei ao escritório. Para a minha surpresa, durante o resto do dia, o grupo de pessoas de amarelo foi o assunto dominante na internet. Não exatamente o grupo que eu havia visto, ocorrera o mesmo em diversas cidades. Paz, união, mudança. "É sobre isso", postaram os jovens que compartilharam fotos e vídeos daquela ladainha.


Passei novamente por eles ao sair do trabalho, naquela tarde, a caminho do metrô. E foi o momento mais estranho. Os malucos de amarelo estavam todos de mãos dadas, voltados para o sol poente, entoando um cântico melancólico. A cena chegou a parar o trânsito, e ficou em minha mente por todo o caminho de volta para casa. Desnecessário dizer o quanto isso só fez aumentar a publicidade gratuita nas redes sociais. Ainda naquela noite, já tinham ganhado milhares de seguidores. Ganharam também um apelido: Canários.


Os encontros se repetiram nos dias seguintes. Com cada vez mais pessoas de amarelo engrossando o movimento. Os Canários afirmavam que qualquer um poderia se juntar ao grupo, bastava aceitar a canção em seu coração. Alguns deles passaram a aparecer com um desenho na testa, uma pirâmide com um olho no centro. As cabeças raspadas deixavam as tatuagens em destaque.


Mais vozes se uniram à canção crepuscular, aqueles cantos gregorianos que ninguém entendia a letra. Todos atraídos pelas promessas utópicas da seita. A história mostra que as pessoas, principalmente as desesperadas, acreditam em qualquer coisa. Eu sempre fui desconfiado, mas naquela época eu não tinha como saber o quanto aquilo ia descambar, e nem tinha muito o que fazer. Só ficava imaginando teorias conspiratórias, os Illuminati, Charles Manson, Keith Raniere, Coach Quântico Online, todos os roteiros de filmes e séries de qualidade questionável que assisti na vida. E ainda assim, nada poderia ter me preparado para o que estava por vir.


A semana voou, chegou o dia 31 de dezembro. Era possível sentir a mudança, de verdade. Havia algo diferente no ar, um sentimento difícil de explicar. E não era por conta da volta da São Silvestre ou do Show da Virada. Eu cheguei a duvidar dessa intuição, dizendo a mim mesmo que estava emotivo por causa do fim do ano e de tudo o que havia passado. Afinal, não é fácil acompanhar de perto acontecimentos históricos como pandemias, guerras, etc. Mas quando saí do trabalho naquela tarde, em vez de correr para o metrô e tentar chegar em casa antes da cidade alagar, optei por um passeio. Caminhei da Estação Consolação até a Praça da Ciclista, e lá estavam os Canários. Centenas deles. E pela primeira vez decidi prestigiar o seu coral/culto/espetáculo junto do pôr do sol.


Foi estranho e bonito. Nuvens escuras e trovoadas acima, horizonte limpo e aberto. A chuva começou no exato momento em que eles entoaram as primeiras notas. Julguei ser uma clássica chuva de verão, chuva dourada, água iluminada pelos últimos raios de luz solar. Ledo engano. Demorei alguns segundos para entender os gritos e ver as pessoas correndo por abrigo. O que caía do céu não era água. O líquido reluzente incendiava tudo o que tocava, causando morte e destruição. Uma "gota" caiu bem perto do meu pé, eu não soube distinguir se era lava ou metal derretido.


Acidentes ao meu redor, pessoas trombando, carros batendo, barracas em chamas. As janelas dos prédios estouraram, fazendo chover vidro junto do fogo e machucando mais gente no processo. Eu olhava para os lados em busca de uma rota de escape. A adrenalina gritava pelo meu corpo e eu estava prestes a tentar a sorte e correr na direção da estação Paulista, quando um dos Canários segurou o meu braço. Só então percebi que todos continuavam cantando tranquilamente, e que a praça onde estávamos não estava sendo atingida pela chuva. Uma energia invisível, um campo de força, um círculo de proteção. Aquele exato espaço estava a salvo, embora o entorno estivesse um desastre.


— Aceite a canção, irmão — o homem de amarelo me disse.


Olhei nos olhos dele, me senti vasculhado até o fundo da alma. Antes de me julgar, entenda: o mundo estava acabando e eu estava assistindo, ao vivo, com direito a corpos derretendo em poças incandescentes. Se nessas condições, alguém te oferece a salvação, você abraça sem pensar duas vezes. Por mais cético que se possa ser. Não era mais uma questão de promessas, era uma escolha simples entre viver ou ter uma morte dolorosa. E eu escolhi viver, aceitei a canção, mesmo sem saber exatamente o que isso significava. Ninguém lê as letras miúdas dos anúncios, ou nos contratos de termos de uso de software, não há tempo...


Naquela hora, senti uma onda de energia percorrer meu corpo. Entrei em transe e me juntei ao coral. E durante esse tempo, eu realmente senti a paz, a união, o universo. Fiz uma viagem psicodélica pelo cosmos com meus novos companheiros, enquanto a chuva de ouro derretido vindo do espaço e o fogo se encarregaram de fazer a transição para a nova era. É preciso um pouco de caos para alterar o status quo. Mas como eu disse antes, esse não foi o fim.


A primeira grande mudança, depois que a chuva parou, foi com os caras tatuados na testa. Eles tinham controle sobre mim. Não um domínio direto, hipnótico, que me transformasse em um robô ou uma marionete. Nem ameaça física. O que ocorria era uma agonia profunda. Tensão, ansiedade, uma angústia que só findava quando eu finalmente obedecia às suas ordens.


Primeiro, eles nos mandaram caçar os sobreviventes, que deveriam escolher: conversão ou morte. De desconhecidos que via diariamente no transporte público a colegas de trabalho, ex-namoradas, familiares. Nunca pensei que minhas mãos poderiam causar tanto estrago. E não sei quem inventou isso, mas fechar os olhos, não olhar enquanto se tira a vida de outras pessoas, não diminui o sentimento de culpa. E eu tentei convencê-los, mas é difícil pregar a paz e a união cometendo assassinatos. Sinto que os fantasmas de todos os que matei moram na minha sombra. E pensava que era isso que tirava meu apetite, mas só descobri a verdade algum tempo depois.


Quando já não havia quem caçar, vieram as visões. Por uma fração de segundos, eu via meus companheiros como pássaros deformados com feições semi humanas, mas sua aparência mudava e voltava ao normal num piscar de olhos. Quase ao mesmo tempo, começaram os sonhos. E os sonhos eram muito piores. Neles, eu via claramente os seres bizarros. Quimeras com penugem amarelada, asas atrofiadas, pescoços longos e depenados, pernas de galinha e mãos humanas nas pontas das asas. As faces tinham bicos curvos no lugar do nariz, queixos quebrados, e olhos como grandes espelhos negros, conservando expressões humanas devido à estrutura óssea. Esses monstros estavam sempre correndo pelas ruas do nosso antigo mundo, se alimentando dos restos de corpos. Certa vez, em um desses sonhos, o céu roxo exibia outros planetas, estrelas e satélites. Eu passava pela Paulista e parei em frente a uma vitrine. Quando vi meu reflexo como um daqueles seres grotescos, acordei gritando. Mas não estava mais no quarto em que dormira, e sim na rua, impregnado com o cheiro de carniça e carvão.


Os pesadelos mais recentes tem me mostrado uma entidade diferente nos céus, um ser colossal com um olho envolto em tentáculos etéreos. Mas não tenho muito tempo para pensar nisso, continuo sem folga, não importa o quão cansado esteja. Preciso seguir as ordens, recolher os fragmentos caídos do espaço. A construção da pirâmide dourada não pode parar.


Conheça o autor



Conta um pouco da sua trajetória como escritor?


Em 2012 eu comecei a colocar no papel várias ideias de histórias que estavam se acumulando na minha cabeça. Foi nessa época que comecei a assistir a série Game of thrones e com ela várias lembranças da época de jogar RPG surgiram. Mas eram só ideias, rascunhos, nada que eu conseguisse juntar e publicar, só que anotei e adquiri esse hábito. Só em 2019, por influência de uma grande amiga minha, a Priscila Rodrigues, que realmente foquei em criar algo publicável.


Surgiu um concurso de contos com temática de fantasia e resolvi tentar. Escrevi, mostrei para alguns amigos e mandei. Terminar esse conto me deu vontade de escrever mais. Escrevi uma história de terror na sequência, para um outro concurso. E depois outra de terror com ficção científica.


Detalhe que eu tinha lido o Sobre a escrita do King e estava preparado caso não gostassem.

Mas essa terceira que mandei foi a primeira que tive um retorno positivo, do Crônicas Fantásticas, e foi publicada na antologia "Horrores Gélidos". Essa sensação de ter alguém totalmente desconhecido que lê algo seu, gosta e quer colocar em uma coletânea é uma coisa maluca. Aí, na mesma semana, os organizadores da outra antologia de terror também entraram em contato para publicar e depois disso não parei mais.


A pandemia também me influenciou bastante. E nesse ponto, a escrita me salvou porque foi uma válvula de escape. Nesse tempo eu tive a oportunidade de conhecer outros escritores também. Em 2020 participei de uma antologia na Cartola Editora, conheci muita gente bacana. Aprendi mais sobre o processo todo, revisão, edição, sobre o meu próprio processo criativo.


Em geral, escrever é solitário, mas trocar ideia com outros escritores ajuda demais. Aprendi bastante também sobre divulgação, fui conhecendo mais comunidades, influenciadores. Mergulhei mesmo nesse mundo. Numa dessas antologias, "Os casos ocultos de Sherlock Holmes", conheci o Alec Silva, que era o organizador, e também o Diego Quadros, idealizador do selo Ficções Pulp. Acho que a partir desse ponto, o que ainda tinha de dúvidas e travas caíram de vez.


E quanto aos gêneros que você escreve e consome?


Eu leio muito e leio de tudo, mas o que eu mais escrevo é terror e ficção científica. Mesmo quando experimento algum outro gênero, percebi que minhas ideias acabam indo para um lado mais sombrio.


Outras artes só assistindo mesmo. Gosto muito de música e até me arrisco num karaokê, mas nada pretencioso.


Quais temáticas costuma tratar em sua obra?


Eu costumo trabalhar o medo, a dor, a morte, muitas vezes trazendo esses temas para situações do dia a dia. Também costumo falar bastante sobre drogas e vícios, direta ou indiretamente.


Em "I-cbox", por exemplo, um dos meus primeiros contos, uma geladeira com inteligência artificial bagunça a vida de um casal e eu coloco o medo também nas relações humanas, o ciúme levado a situações extremas.



Me interessei um pouco sobre como funciona o seu processo criativo, porque como são temas muito humanos. Pode nos falar um pouco sobre?


Meu processo criativo é bem assim mesmo. Pode surgir do nada, qualquer ideia. As vezes é uma imagem ou uma cena curta que passa como um filme na minha cabeça. E aí eu tenho que completar a história. E tudo depende de onde a cena vai se encaixar, se for um começo, geralmente demora mais pra finalizar... Se for o fim, eu preciso saber o que aconteceu pra chegar ali e aí posso acabar escrevendo várias versões e mudando tudo.


Em "A canção da nova era", a primeira cena que me veio foi a da chuva. Era o final na primeira versão, mas eu achei que não chegava ao efeito que queria acabando ali e, depois de um tempo, me veio a ideia de explorar melhor o que aconteceria depois.


Conto da autoria de R.R. Oliver
Entrevista e arte de vitrine por Filipo Brazilliano
Revisão e edição por Elisa Fonseca

Se você é escritor(a) e gostaria de ter um conto publicado em nossa revista, envie email para perpetuatendimento@gmail.com




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