Brasil, 2025
É meio dia na região recentemente independente da ilha estado de Salum, no nordeste do Brasil. Nessa altura metade de sua população se encontra vagando morta por um vírus a cinco anos. Lá o calor fustiga um solo de argila seco e sem vida, rachando-o em vários pedaços. No lugar é deixado aberto um imenso corpo de terra maciço, que um dia escondera um arquipélago com imensa vida e com muita água potável no subterrâneo, mas que agora aos poucos também evaporava, tornando a quentura labaredas de ar seco que dançam entrando sem ser convidadas nos pulmões dos seres que por lá ainda sentem o peso de suas cabeças.
A cidade do interior da ilha em que estamos se chama Mambera, total de seres vivos doentes e desaparecidos: quatrocentos e noventa. Se contar as plantas que ainda respiram, mesmo que poucas, mas tão resistentes quanto quem as procuram para se abrigar do dia dar-se-ia o dobro, entretanto, por lá só há plantas secas e cactos e, “eles” procuram flores. Ou melhor, os Flores, que são os líderes deles. “Eles” são os quatrocentos e noventas, eles também são baixos, mas mais baixas são as mulheres. O que não têm de altura tem de cabeça, ou seja, nada proporcional. Os “nós” são todo o resto que os chamam de “mulas”, adjetivo para pessoas burras e ignorantes, que não colaboram, que são teimosas, mas que ainda sim servem para alguma coisa como: carregar peso. Entretanto, o peso que eles carregam nas cabeças são inflamações e causam dissociações de comportamento e dor, não só neles –dá para ver em seus corpos magros-, mas em todas as pessoas em que eles tocam, feito um vírus progressivo e agressivo. Portanto, os “nós” sabendo da “verdade” com mente limpa, não podem deixar que acabem prejudicando o todo. E é por isso que a ajuda do estado maior está pisando nessas terras.
Luísa Flores é uma recente de “nós” e tem dezesseis anos, contudo, parece bem mais jovem ao segurar uma pistola nas mãos. Seu corpo magro caminha com uma mochila de vidro negro nas costas contendo o potente instrumento de salvação do estado maior. Passando entre as ruas de barro da cidadezinha do interior da ilha, ela encontra um bar aberto, mas sem clientes, com um ar completamente sem vida e silencioso, enquanto desvia do quebra cabeça que é as rachaduras no chão de Mambera. Sua cabeça está limpa a exatas duas semanas da doença. Também está coberta por uma proteção de vidro com respirador lateral. Ela respira um ar filtrado e fresco enquanto caminha atenta em meio a quentura do lugar. Contudo, seu corpo moreno só aquece mais e mais, já visivelmente castigado por muitos anos de trabalho sobre o sol e agora, novamente, sua pele é exposta ao julgar pela roupa fresca que deixa amostra seus membros. No entanto ela veste roupas novas: shorts, camiseta, tênis, como sempre sonhou, porém, naquele momento ela nem se quer se dá conta do que veste, não é o que importa para ela, não mais. A única coisa que lhe importa é achar os Flores e libera-los do peso de suas cabeças doentes de mulas, ou qualquer outro deles que ela avistasse em sua frente.
No instante em que passa pela quarta casa da primeira rua da pequena cidade, sem ver ou ouvir nem se quer o ruído de uma alma penada, ela imediatamente é inundada por um sentimento de ansiedade. Do seu bolso tira um relógio digital, procurando por algo, quando ouve-se: “ativar leitura de reportagem de: Setembro de dois mil e vinte cinco”, uma voz robótica diz vinda do relógio digital que agora Luiza veste no pulso direito, logo em seguida é projetado uma tela tridimensional a sua frente com a imagem de um homem de mais ou menos quarenta e cinco anos, ele tem um rosto redondo, poucos cabelos grisalhos em uma careca lustrosa e um olhar negro, penetrante e sério, que era descrito na reportagem como o Ministro da Saúde da ilha estado de Salum; a voz continua: “Lucas Flores acaba de reportar ao Supremo Tribunal Federal e a Policia Federal um esquema de golpe de estado por parte do presidente de Salum com a prerrogativa do alastramento de um vírus desconhecido que fragiliza a capacidade do infectado de tomar decisões racionais. Esse vírus é altamente perigoso e tem foco na região norte e por lá tem se alastrado rapidamente por toda a ilha. O biólogo e ministro alega que o golpe é certo e pede demissão por não cooperar com a apocalíptica mentira. Sua loucura foi detectada pelos médicos e agora ele é um foragido. Se você, onde quer que esteja no país encontrar Lucas Flores ex-ministro da saúde do governo de Salum, por favor entrar em contato pelo...”, Luiza desliga o relógio ao escutar um barulho vindo de trás de uma ruela por detrás de uma casa a sua direta. Ela não sente nada a não ser um instinto predador de caçar o som. Sem pensar suas vezes corre aos saltos, mas ao chegar na ruela não encontra nada a não ser um casal de frangos magros. Entre as casas singelas e organizadas em fileiras, todas do mesmo tamanho e cores desbotadas, Luiza consegue avistar cartazes de um homem de pele seca e beiço chupado, um olhar caído e uma postura militar ereta, junto ao seu nome: Capitão Amarelo, o slogan “Salum acima de tudo e acima de todos! ”, ou “À caça as mulas, por Salum” do atual líder totalitário do país ainda podia ser lido facilmente. Entretanto, o que mostrava uma oposição perigosa do lugar era a imagem estar inteiramente rabiscada com a imagem de um diabo. Ao perceber isso Luiza se enfurece, mas ela não sabia o porquê dessa emoção fugaz.
– Mantenha o ritmo, nós. – diz uma voz masculina de dentro do capacete de proteção de Luiza, interrompendo sua distração.
– Eles sabem que estamos aqui e se escondem, senhor. – responde a garota de maxilar rígido e olhos sem vida, que não piscam.
– Encontre seus parceiros e vá até sua casa. Traga logo as quatro mulas, quanto mais o tempo passa mais eles sofrem. Você quer livrar sua família dessa dor, não quer?
– É o que eu mais quero, senhor.
Luiza desliga o contato de seu capacete e anda sobre as ruas de barro em direção a uma pequena igreja com afrescos coloniais no centro da cidade. Assim que chega aos pés das escadas que sobem para a entrada, escuta um grito e logo em seguida um tiro. Um corpo jovem é empurrado para fora da igreja e cai deslizando sobre as escadarias até cair sobre seus pés. Ela olha para o rosto de um jovem rapaz de olhos verdes vidrados sobre uma pele escura, com uma marca de bala de arma alojada na testa, mas logo desvia sua atenção para os barulhos que se fazem ainda dentro da sacristia. Dessa forma, a jovem salta por cima do corpo e anda a passos largos para dentro da igreja pela grande porta de carvalho talhada a frente, segurando sua pistola rente ao corpo miúdo. Já dentro, olha para o chão coberto de azulejos coloridos e sente repulsa de um fragmento de memória qualquer remotamente associado. A sua frente há uma mulher entre os seus cinquenta anos, corpo parrudo, com curvas sinuosas e um cabelo comprido caído sobre o rosto, presa pelos punhos em um dos bancos do salão de missas, inconsciente. A sua frente há um homem barbudo, entre seus vinte e cinco anos, parte dos mandados dos “nós”, com sangue manchado na camisa. Ele, como Luiza, usa um capacete de vidro com um respirador acoplado a lateral.
– Onde esteve? Não importa. Me traz a porcaria da mala. – O rapaz indica com o dedo indicador frenético para uma mochila de vidro negra, igual à que Luiza carrega nas costas, que se encontra debaixo de um bloco de vidro transparente contendo o corpo de Jesus Cristo deitado, talhado em madeira. Por cima ainda podia-se sentir o calor das velas das recentes preces dos fiéis aglomeradas sobre a proteção da imagem derretendo sobre o corpo fustigado do vidro.
Luiza guarda a arma prendendo-a no short e caminha a passos largos até a mala de vidro, todavia seu corpo novamente responde, dessa vez com pernas bambas, sem ser convidado, assim que chega perto da imagem de Jesus.
– Vambora! Não temos o dia todo. - diz o homem impaciente enquanto segura o corpo mole da mulher inconsciente. Luiza apressa-se jogando-se de joelhos para alcançar a mala e volta dando-a nas mãos do jovem rapidamente.
Esse indica que Luiza segure o corpo da mulher gorducha para que dessa forma possa desarmar a mala e prosseguir com o procedimento padrão. Ao apertar em um botão pouco aparente sobre o casco da mala, essa abre-se, dividindo-se em dois. Dentro há um capacete de metal e vidro ligado por diversos fios que se prendem nas laterais até os fundos da mala oca. Nesse sentido, enquanto Luiza segura o corpo da mulher, o rapaz ajeitava a coroa de fios em volta de sua cabeça inchada de mula, tomando cuidado para não toca-la com os dedos. Depois, um novo botão é acionado e uma descarga de conteúdo amarelo começa a subir pelos fios da mala até a coroa na cabeça da mulher. Quando a toca faz-lhe acordar instantaneamente aos gritos, mas apenas isso, seu corpo não se move.
– Você. Não pode ficar aqui. – O homem à frente de Luiza recebe uma mensagem através de seu capacete e se dá conta de quem está fazendo perder tempo.- Faça os Flores aparecerem. Eles não vão sair da cidade. Estamos cercando. Quando terminar aciona a chamada que nós vamos trazer eles para a entrada principal. Eu tenho outro servicinho para você, depois... Anda! – O homem fala incisivo, soltando as mãos em punho de Luiza das cordas que prendem os pulsos da senhora em processo de cura, com violência. A menina não se abala de forma alguma. Sua expressão não demonstrava nada além de concordância mutua e convicção sobre seu dever.
Na saída da igreja, ela saca a arma de dentro do short e pula o corpo do garoto morto a poucos minutos, indo em direção a um corredor de casas logo à frente; quando de relance captura com os olhos, um cachorro de porte pequeno correndo em direção a uma relembrança que a toma, dos passos coreografados que fazia todo o domingo depois da missa. Ela não perdeu tempo e apressou o passo atrás dele, espalhando o pó da terra seca por todo lado.
O animal entra dentro da décima casa a direta da rua completamente vazia. Essa é construída de pau-a-pique, cimento e palha verde. Sua fachada está pintada de azul, feito o mar que circula a ilha estado de Salum. Estando em pé de frente para a entrada, Luiza não tem dúvida de que aquela é a sua casa. Ela toma ar e entra pela porta da frente de vagar. Um rangido no assoalho de madeira faz seus olhos vidrados apertarem-se pela primeira vez com receio de ter chamado a atenção para sua presença. Ela segura a arma com o cano para baixo com as duas mãos firmes no cabo, vasculhando cada cômodo da casa, começando pela sala, depois a cozinha, com cheiro de alho amassado e café, que faz seu corpo reagir instantaneamente, com desgosto. Suas mãos soam, seu coração acelera, e ela sente algo queimar no peito feito água ardente. Por isso sai logo dali, seguindo para o resto da casa. Ela entra no primeiro quarto, e visualiza algo simples, apenas uma cama de casal bem arrumada no centro do quarto com um lençol rendado em formato de flores de carmim, algo identificado por Luiza logo à primeira vista, apesar de não se lembrar de ter visto essa planta antes. O segundo quarto já continha mais informações. Ela entra com o máximo de atenção para qualquer ruído e tomando cuidado para não fazer nenhum. Ali há uma cômoda com um terço em cima, uma cama de solteiro com um lençol azul de algodão e um armário com um espelho redondo na frente. Luiza para bem em frente a ele e observa o reflexo de seu rosto como se a muitos anos não o encarasse. Sua boca possui lábios finos, seus olhos por outro lado são enormes e castanhos amarelados, seu nariz é pequeno e redondo e seus cabelos enrolados e curtos. Assim que termina de se examinar, friamente, ela decidi abrir o armário para vasculhar. Nele só há camisetas masculinas de gola e regatas simples. Por último vai ao terceiro quarto. Quando entra se depara com duas camas de solteiro, uma em cada canto do quarto, com lençóis cor de rosa. Entretanto nada disso a toma atenção, pois um cheiro forte de perfume doce invade o ar contido dentro do capacete, fazendo sua cabeça latejar instantaneamente procurando um escape daquela sensação. Ela leva as mãos à cabeça, mas não consegue a tocar, pois a proteção de vidro separa seu toque. Ela começa a ficar angustiada e curva-se apertando os olhos e a respiração. De assombro dois braços surgem agarrando seu corpo por trás, puxando-a para fora do quarto. A menina se debate e consegue acertar uma cotovelada nos olhos de um homem, que a solta. Ela, então, se recompõe rapidamente mirando a arma em direção ao homem que levanta as mãos para o alto.
– Filha, deixa eu tirar o seu capacete? – Lucas Flores, um homem exatamente como descrito nos jornais, a tirar o fato de sua face cansada ter traços de velhice precoce e extrema angústia, tenta chegar a passos curtos perto de Luiza.
– Não dê mais um passo. – ela aconselha com voz continua.
– Vamos embora. Eu e sua mãe podemos ajudar a fazer você lembrar de tudo minha filha. Vamos... – Lucas tenta novamente uma aproximação e Luiza percebendo de suas intenções dá um tiro em seu ombro esquerdo.
– Onde ela está escondida? – pergunta a menina ainda com a arma apontada pronta para um novo disparo. Seu pai não responde. Assim que ele cai ao chão ela saca uma pequena arma de choque presa atrás da mochila e prende nas pernas de Lucas, que se contorce sem conseguir reagir.
Luiza tira a mochila das costas, aperta o botão no casco e retira a coroa da cura das cabeças de mula. Nesse momento ela sente a estranha sensação de estar salvando a humanidade, ao mesmo tempo em que seu estomago se embrulha de enjoo. Assim que o processo de cura é acionado e o liquido amarelo começa a subir, Luiza retira a arma de choque do corpo de seu pai e se levanta, acionando um pequeno botão lateral de seu capacete.
– Ex-ministro recuperado, senhor. Peço reforços. – indica.
Enquanto se distrai com a mensagem um corpo sai de um alçapão preso ao chão da cozinha. Ele se encaminha tão rápido para cima de Luiza que ela nem consegue pensar duas vezes, apenas atira em sua direção. Um grito se ouve vindo da cozinha, de onde o rapaz havia saído. Esse cai ao chão de bruços. Escondendo o rosto que se mistura com seu próprio sangue, rápido demais.
– VOCÊ ESTÁ LOUCA! POSSUIDA PELO DEMONIO! – grita uma voz feminina entre choros.
– Saia de onde você está, imediatamente! – manda Luiza apontando a arma para uma mulher, Larissa Flores, de mais ou menos quarenta anos vestindo um vestido singelo, enquanto segura um terço, convicta de milagres, nas mãos trémulas. Assim como Luiza, ela possui um corpo esbelto de pele queimada de sol e apesar do cabelo longo esse era exatamente cacheado.
– Você matou o seu irmão! – Diz a mulher entre lágrimas pesadas em um rosto cansado caminhando para fora do alçapão até a sala. Ali ela se debruça sobre o corpo do filho, Leonardo Flores, enquanto parte de Luiza tenta analisar o que é essa comoção toda.
– Esse rapaz tentou me atacar, está doente. Se foi atingido é porque quis assim. É uma mula. – responde a menina apontando para a cabeça dele.
“Minha nossa senhora aparecida, livrai-nos de todos os males. Amém”, cochicha Larissa em uma prece de punhos unidos sobre o corpo do filho. Luiza apenas observa.
– Eu aceito ser curada minha filha. Tudo já foi levado de mim. Nada é melhor do que isso. – A mulher fala e se levanta, enquanto faz um sinal da cruz em seu corpo. Luiza vai até seu pai e retira o capacete indicando fim de processo. Larissa caminha até a filha e se ajoelha puxando os cabelos para trás.
Assim que o processo se finaliza para ambos os seus pais, eles se levantam, guiados pelas mãos de Luiza para fora da casa. Suas faces estavam petrificadas e os olhos nem se quer piscavam.
Do lado de fora esperam por eles um grupo de dez de nós, entre homens e mulheres, todos protegidos por capacetes de vidro com respirador lateral e armas de vários tipos presas pelo corpo. A frente dos “nós”, há um homem jovem de barba comprida o qual Luiza se deparara mais cedo na igreja. Esse segura um capacete de vidro em cada uma das mãos, e entrega para Lucas e Larissa Flores, que colocam sem cerimônia.
– Há uma mula morta dentro da casa. – indica Luiza.
– Quem?
– Leonardo Flores.
– Vem comigo. – O jovem rapaz indica com a mão que Luiza o siga para dentro da casa. Assim que entram, o homem tira de dentro do bolso da calça jeans um saco preto de lixo e veste sobre a cabeça de Leonardo. Logo em seguida segura seu corpo sobre os braços.
– Recolha sua máquina da cura e nos encontre lá fora. – diz o homem saindo da casa levando o corpo do irmão de Luiza nos braços. Em seguida, Luiza faz o que lhe é pedido. Todavia, durante a arrumação do equipamento de volta na mala ela se depara com um barulho alto e engraçado de passarinho vindo de algum lugar próximo. Ela deixa o que está fazendo e segue o som, que vem de dentro do terceiro quarto. Lá, Luiza se encontra novamente com um cheiro doce, com gosto de bolo de fubá e uma viagem para a praia. A confusão se sensações se instala dentro dela, novamente. E sem que ela se desse por conta, de dentro de um pequeno guarda-roupa a suas costas, salta o corpo de uma menina sobre o seu pescoço. Luiza cai ao chão, debatendo-se. As duas meninas rolam, agarradas sobre o chão. Até que Luiza se vê por baixo. Vista de relance uma mancha escura se projeta na direção de sua face, quebrando o vidro do capacete que a protege e fazendo o mundo de cheiros da vida do lado de fora inundar sua faringe.
– Acorda! – diz a menina em cima de Luiza, chacoalhando seu corpo com as duas mãos. Assim que Luiza abre os olhos balançando a cabeça para se livrar dos cacos de vidro caídos sobre sua testa ela se depara com um novo choque que faz seu sangue esfriar de vez.
– Você sou eu. – diz Luiza, quase tão baixo que poderia se confundir com um sussurro. A menina a sua frente era fisicamente exatamente como ela: sua boca possui lábios finos, seus olhos por outro lado são enormes e castanhos amarelados, seu nariz é pequeno e redondo e seus cabelos enrolados e curtos. Era seu reflexo, era sua irmã, Lara Flores.
Lara retira de dentro da camiseta um colar com a imagem de uma flor de carmim e coloca à frente do rosto de Luiza, cantando em descompasso um som em que diz: “Entre as rumas de são João um doce jovem me encontrou, tocando no coração a canção do pai do Pelo. Subindo as escadas da procissão, a família Flor pede por nós, um pouco de pão de sal e muito amor”.
– Lara... – Luiza se recordava de tudo. Sua cabeça estava cheia de novo, cheia de si mesma. Cheia de todas as ideias e vontades, cheiros e sensações. Ela podia senti-la pulsar grande.
Lara puxa a irmã para se sentar e lhe abraça apertado no meio do quarto. Entretanto, os passos dos “nós” invadem a casa irritadiços. Em poucos segundos encontram as irmãs gêmeas abraçadas e Luiza com a cabeça inflamada, novamente.
Só bastou um estalar de dedos que as irmãs foram separadas por braços mais fortes que suas vontades de liberdade. Ambas foram arrastadas para fora da casa e levadas em procissão junto ao corpo do irmão morto e dos pais quase no mesmo estado se não fosse por seu caminhar altivo, até a entrada principal da cidade de Mambera. Lá, encontrasse montado um palco de madeira improvisado. Em cima, uma guilhotina, dos tempos da idade média, porém, talvez, mais eficiente.
Por um sinal de um dos “nós”, o corpo de Leonardo foi levado para cima do palco e ajeitado confortavelmente na base do instrumento de corte. Os cinquenta de nós, organizadamente assistiam à apresentação. Segundos depois a lamina desce fazendo rolar a cabeça coberta pelo saco de lixo preto.
Luiza solta um grito tão forte que sente as veias de sua garganta queimarem. Sua irmã Lara está petrificada demais para dizer qualquer palavra.
– Não podemos deixar as mulas mortas com o perigo de suas cabeças contagiosas. São as regras de sobrevivência, meus irmãos. – diz um dos cinquenta homens de nós, que executou a decapitação da cabeça de Leonardo em cima do palco.
– E, também, não podemos deixar que cidadãos de bem voltem a disseminar doenças quando bem entenderem. – Continua o homem, apontando para Luiza, presa pelos braços aos pés do palco.
– Não! Me soltem. Eu faço o que vocês quiserem!
O homem em cima do palco apenas levanta sua mão direita acima da cabeça e diz:
– Cortem a cabeça da mula.
Conto por Maria Eduarda Camargo
Edição e revisão por Elisa Fonseca
Comentarios