Largamente conhecida pelo público de histórias em quadrinhos, a primeira onda da invasão britânica trouxe consigo altos níveis de magia e ocultismo para o formato. Alan Moore, Grant Morrison e Neil Gaiman são bruxos convictos ou conhecedores da arte e diversas foram as obras em que esse trio criou com essa temática ou usaram como pano de fundo. Sandman, Os Livros da Magia, Promethea, Do inferno, Providence, Kid Eternidade e ainda personagens, como John Constantine, são frutos dessa nova abordagem e tem seu lugar de destaque na história da narrativa sequencial. Consequentemente, a magia também encontra sua relevância nessa história, também uma análise de como ela é abordada e mesclada com as outras narrativas de algumas dessas obras se mostrará bastante frutífera, não apenas em aspectos técnicos, mas também para entendermos o que faz desses quadrinhos e personagens o que são.
Comecemos pelo britânico mais querido e, não contraditoriamente, odiado dos quadrinhos. Criado por Alan Moore, John Constantine sempre teve seu status de ocultista estabelecido de uma forma um tanto nebulosa. No filme de 2005, com Keanu Reeves, ele é chamado de exorcista por um demônio encarnado e na lista telefônica que Izabel usa para encontrá-lo, a descrição de seus serviços é bem ampla. Nos quadrinhos acontece o mesmo e as suas capacidades parecem abranger o conhecimento de rituais de invocação, até a manipulação mental. Então não é incomum considerar o personagem um verdadeiro faz tudo.
Consequentemente, por vezes, a magia retratada nos quadrinhos de Hellblazer é muito mais sugestiva do que ritualística, ou até prática. Nós podemos ter uma saga completa imersa em tarologia, como foi a do Jamie Delano da edição 35 à 40, mas também uma como a do Brian Azzarelo: “Na Cadeia”, em que basta Constantine deixar sua digital nas paredes de uma prisão para que as pessoas comecem a enlouquecer. Ou seja, acontece muito nas entrelinhas e sem grandes explicações, e nesta saga em particular há uma tentativa clara de esconder do leitor como as coisas acontecem. A digital deixada nas paredes perpassa todo o quadrinho, mas só tendo um olhar muito atento para perceber a presença e a utilidade dela para a trama antes disso ser deixado claro.
É sempre difícil afirmar qual de fato foi a intenção dos autores quando apresentam esse nível de sutileza, mas há alguns detalhes que dão um vislumbre desse motivo. Quando John Constantine estava prestes a ser estuprado, mas deixa o banheiro sorrindo, com seu quase agressor estatelado no chão e fora de suas capacidades mentais, ele ri também do leitor, que, assim como um outro preso, narrador da história, não vê, nem entende o que foi feito naquela elipse de tempo. Sendo assim, condizente com o teor oculto de suas práticas, não só para a história em si, mas, principalmente, para o leitor. O que revela um propósito consciente do autor, um bom conhecimento do personagem e de como a magia, por vezes, é atrelada a ele. E isto, por sua vez, revela uma faceta da maestria de Constantine, que não precisa se valer de todo um procedimento demorado e burocrático para fazer magia, ao ponto de a linha entre superpoder e magia ser muito tênue.
Essa representação menos formal e mais alegórica da magia é também abordada em Os Livros da Magia, de Neil Gaiman. A certa altura, Timothy Hunter, predestinado a ser o maior mago da era moderna, tem um encontro com John Constantine, um dos mentores responsáveis por apresentar o garoto à magia em suas diversas facetas. Durante a companhia do bruxo (se é que podemos chamá-lo assim), a magia acontece do mesmo modo natural, corriqueira e pouco explicada que apresentamos antes. Se eles precisam pegar um voo para que John apresente ao garoto alguns amigos nos Estados Unidos, num piscar de olhos os dois já estão dentro do avião, sem nem mesmo terem passaporte. Ao aterrissar, a etapa natural de ser conferido pela alfândega é simplesmente pulada, enquanto eles se dirigem livremente para a entrada do aeroporto. O mesmo ocorre com o encontro dos dois com Zatanna. A bruxa usa magia para conseguir roupas do tamanho exato do Tim, bem como para saber o nome da coruja dele, e trata isso de modo tão corriqueiro quanto fazer um café da manhã, dessa vez sem magia.
A HQ, contudo, não se restringe a Constantine e seus métodos mágicos peculiares. Como o mesmo diz, o oculto, como um todo, não é algo dicotômico como alguns talvez pensem. Caos vs. ordem, magia branca vs. magia negra, luz vs. trevas. Na verdade, há todo um espectro de cores, uma ampla gama de fractais e diferentes padrões de complexidade.
E por isso, Tim Hunter ainda conhece outros 3 mentores e os respectivos filetes da magia que representam. Indo do mais mundano, tal como o advento da linguagem e a faísca da súbita criação a partir do nada, até o mais fantástico, com fadas e seres mitológicos existindo no mesmo espaço-tempo que o resto da humanidade, mas sintonizados em uma frequência diferente, tal como em Invisíveis do Grant Morrison, ou a plataforma 9 ¾ e o Beco Diagonal em Harry Potter.
Durante esse percurso, Tim se depara com alguns conceitos bem singulares, como o da tecnologia entendida como mágica. O desenvolvimento tecnológico é tão formidável que a explicação de seus produtos não apenas fica difícil, mas também impossível de ser feita, sendo preciso, antes de tudo, um ato de fé. E conforme observa no decorrer das eras, é mostrada ao garoto a contínua volta ao primordial, o constante retorno aos elementos basilares da estrutura de toda a realidade. Algo que, dentro da filosofia antiga, poderíamos facilmente identificar com a nova junção dos quatro elementos, fogo, terra, água e ar, por ação da philia após um período separados. Mas o que é revelado a Tim, são os elementos basilares da história do mundo, e, consequentemente, da psiquê humana. Por isso, ao observar o fim das eras, aquilo que é visto como os responsáveis por encerrar o ciclo, são algumas cartas bem conhecidas na magia, alguns dos Arcanos Maiores do tarô. E é também este o horizonte de Sandman e Promethea.
No caso do primeiro, a semelhança com Os Livros da Magia e a proximidade com magia em geral não é enorme. Mas poucas foram as obras que apresentaram um universo próprio tão rico e fabuloso. A magnum opus de Neil Gaiman é um dos quadrinhos mais aclamados de toda a história da arte. E bem merecido. A obra apresenta uma narrativa nem sempre linear da história de Sandman, senhor do sonhar, com o intuito de também expandir e nos apresentar a este enorme universo. As representações da magia nesta HQ são sempre bastante fantásticas ou parcialmente inventadas. Sobre a primeira, é fácil apontar seus sujeitos e dentre eles temos o Reino das fadas, com toda a sua gama de seres e objetos mitológicos, a Calíope, uma personagem da mitologia grega, e outros. Acerca do segundo, contudo, as coisas ficam um pouco complicadas, pois não é fácil distinguir o que é próprio da magia enquanto teoria e prática consolidada e o que é simplesmente liberdade autoral de Neil Gaiman.
Quando falamos da invocação e aprisionamento de Sandman, por exemplo, temos elementos verdadeiramente utilizados em práticas de magia, como o uso de pentagrama, objetos de troca e uma conjuração. Contudo, a única coisa utilizada de acordo com rituais mágicos, é o pentagrama, um dos elementos da evocação. Os objetos utilizados e a conjuração por sua vez são próprios de Neil Gaiman. O mesmo acontece a respeito da mitologia dos perpétuos. Eles não são mais que conceitos personificados, e no início da existência eles começaram a surgir, fruto da relação entre Noite e Tempo, e no fim das eras, são eles quem fecharão as portas da existência. Tudo isso poderia ser facilmente confundido com várias mitologias ou seus panteões de deuses. E de fato parece que essa foi a influência, mas em Sandman tudo conflui para o gênio artístico do autor e se transforma em algo novo, com relações e mecanismos de funcionamento próprios. E é nesse aspecto que a HQ se aproxima de Os Livros da Magia. Como dito, no fim dos tempos, são os perpétuos que fecharão as portas da existência, tal qual os Arcanos Maiores o fazem diante dos olhos de Tim Hunter. E como os filhos de Noite e Tempo são conceitos próprios da existência e fundamentais para a sua manutenção, eles se assemelham muito às cartas do tarô e ao que elas representam. Contudo, não são a mesma coisa, e não é possível traçar um paralelo direto entre cada perpétuo e os Arcanos.
No caso de Promethea, por outro lado, Alan Moore não só se inspira na tarologia, como apresenta todo um capítulo inteiro voltado a destrinchar o significado dos Arcanos Maiores e sua relação com o desenvolvimento da história do mundo, do homem enquanto espécie e de sua psiquê. Tudo isso num tom extremamente poético e apoiado nos dogmas de Hermes Trismegisto, representados pelo caduceu empunhado por Promethea e suas cobras falantes, Mack e Mike.
Durante os outros capítulos também temos a presença forte de elementos mágicos e ramificações do ocultismo, como a demonologia, que figura desde o primeiro arco da HQ. O que mais chama atenção, além de a obra ser uma verdadeira introdução à magia, é que a protagonista é chamada pelo próprio Alan Moore de heroína científica. E, de certo modo, não deixa de ser. Primeiro porque o contexto histórico das histórias é um futuro imaginário, segundo porque, como havíamos dito acerca de Os Livros da Magia, ciência (abarcando também a tecnologia) tem um teor mágico. Principalmente quando, de tão avançadas, seus paradigmas basilares são perdidos de vista, e é preciso ser um verdadeiro especialista para conseguir entendê-las e saber seu funcionamento, coisa que também poderia ser afirmada por um mago.
Além de todas estas obras e personagens citados, temos também como fruto da invasão britânica nos quadrinhos, Kid Eternidade, que, em comparação, é um verdadeiro patinho feio. A narrativa é muito menos linear que Sandman, muito menos introdutória que Promethea e Os Livros da Magia, mas tão ou mais experimental que qualquer uma dessas e abordando um ramo da magia pouco retratado, a magia do Khaos. Uma olhadela rápida no Principia Discordia retrata muito bem essa vertente do ocultismo, pois o projeto editorial parece ter sido feito por uma criança da quarta série, num trabalho para fazer um jornal ou algo semelhante. Isso, contudo, revela uma adequação entre forma e conteúdo, já que a magia do Khaos defende uma metodologia mágica heterodoxa, desapegada dos dogmas e ritos tradicionais, reconhecendo a própria psiquê humana a principal ferramenta da magia, desde que treinada de acordo. Assim, nada mais justo que uma obra que apresenta os “princípios” desse tipo de magia, não tome as escolhas mais comuns em seu layout, diagramação, uso de imagens e todo o resto.
Da mesma forma, Kid Eternidade tem em sua narrativa não linear e sua arte toda a representatividade que seu conteúdo khaoísta precisa. Seu roteiro, por sua vez, tem como um de seus protagonistas o personagem que dá nome ao quadrinho. Assim como em Watchmen, Kid Eternidade era um herói de outra editora comprada pela DC, que tinha o inusitado poder de materializar pessoas mortas. Na HQ de Grant Morrison, esse passado é apresentado superficialmente e também explica o que houve com o personagem no período em que nada mais foi escrito, ele estava preso no inferno. Depois de anos sendo torturado ali, Kid consegue fugir por algo chamado na HQ de “estrutura de coincidência”, que envolve diversos fatos supostamente aleatórios mas que convergem em uma palavra e um propósito milenar. A palavra é “eternidade” e o propósito milenar é o desenvolvimento humano. Ao fugir do inferno, Kid aparece numa festa na qual se encontra Jerry Sullivan, comediante de stand-up e que por pouco não escapa do massacre que os persecutores proporcionam. Conforme a história se desenrola descobrimos que o propósito milenar da desenvolvimento da raça humana estava há séculos predestinado a Jerry Sullivan e que toda essa estrutura de coincidência que levou a ele e Kid se encontrarem foi, na verdade, “planejada” pelos agentes do khaos, e aquilo que Kid considerava ser o inferno, na verdade era o reino deles. E mais, durante sua estadia naquele reino e sua fuga, Kid acreditava estar sempre sendo cooptado pelas forças antagônicas da ordem, consideradas por ele como anjos ou seres divinos até então. Mas, na verdade, tudo isso foi um disfarce dos agentes do Khaos para possibilitar continuação do plano e que nisso não há nada de maligno, pelo contrário. São as forças da ordem que sempre atuaram em tolher o desenvolvimento humano e que, em retrospectiva, foram contrárias à existência do Cristo salvador e que, na modernidade, tenta impedir novamente a vinda de um messias, cujo pai é Jerry Sullivan.
Sim, é muito confuso explicar, mas necessário. O que a HQ nos traz é que o caos, o não-planejado, o acaso, é justamente aquilo que permite a evolução, é aquilo que nos proporciona melhoria, enquanto a ordem nos restringe e não permite variedade. E isso representa a magia do Khaos à medida em que esta defende justamente a falta de formalidade nos ritos mágicos, visto que isso te cerceia e incapacita. Se o mago deve se apoiar em rituais prontos e ferramentas além dele mesmo, isso deve ser apenas num estágio inicial, para que possa entender o que é e como funciona a magia, mas a partir do momento em que sabe a importância dos símbolos e internaliza que a magia é uma forma de agir por trás do tecido daquilo que é comumente considerado a realidade, ele próprio não deve se valer de nada mais que a si mesmo e sua própria criação. Seja de ritos, palavras de poder ou até ferramentas, desde que tenha ali uma grande dose de singularidade. Além disso, a HQ nos mostra diversas vezes a estrela de oito pontas, o símbolo dessa vertente mágica.
De tudo isso, não é incoerente afirmar que a representação da magia em Kid Eternidade seja muito distante da de Hellblazer. Afinal, ambas se apoiam num elemento menos formal e burocrático da magia. Com isso, não digo que John Constantine seja um magista do Khaos, afinal, acredito que os seus autores fizeram esta escolha por ser uma opção mais viável em relação ao que sabiam de magia e há diferenças evidentes entre um e outro. Enquanto para John Constantine, não há uma dicotomia dentro da magia, em Kid Eternidade, ela não apenas há, como é elemento da realidade. Mas as semelhanças continuam existindo.
E da mesma forma que ao caos indissociável, tudo retornará, também no presente texto retornamos ao seu início, e encerramos este texto com um pedido de desculpas a todos os entendedores e praticantes de magia. Aqui me coloquei numa posição que talvez não devesse, visto que o que entendo é mínimo e o que pratico é nada. Pessoas melhores que eu para falar sobre o assunto da magia existem aos montes. Pessoas melhores que eu para falar sobre a representação da magia nos quadrinhos também. Mas uma das chamas que guia minha atividade de escritor é escrever sobre aquilo que vejo poucas pessoas comentando, apesar de ser uma temática relevante. E aqui que me encontro e me atribuí a função de trazer este texto à tona. E se no final dele os meus equívocos e ignorância tiverem se mostrado extremamente elevados, quero crer que no mínimo, a leitura tenha sido boa.
Sobre o autor
Finalmente mestre em metafísica pela UnB. Aventureiro da realização de sonhos pela metade. Escritor, rapper, magista, crítico musical, literário e jornalista. Do 8 ao 80 só o eu permanece. Marcos Roberto.
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