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A Roda do Tempo gira de maneiras diferentes na TV, por Vinicius Rocha


No dia 19 de novembro de 2021, a Amazon Prime Video lançou a adaptação televisiva da saga de fantasia A Roda do Tempo, escrita entre 1990 e 2013, por Robert Jordan (e Brandon Sanderson, após sua morte em 2007). Composta de 14 livros mais uma prequela, a saga é uma das mais bem-sucedidas dentro da literatura fantástica, tendo vendido cerca de 90 milhões de exemplares.


A história dos livros se passa num universo fantástico e de maneira cíclica, através de Eras. A manutenção desses ciclos vem da Roda do Tempo, a qual é “girada” pela Fonte Verdadeira, e os indivíduos capazes de acessar a Fonte usando o Poder Único são conhecidos como canalizadores, sendo divididos em saidar (a metade feminina) e saidin (a metade masculina). Muitos séculos antes dos eventos dos livros, porém, os homens canalizadores de saidin tentaram derrotar a força maligna conhecida como Shai’tan, ou O Escuro, a qual conseguiu revidar contaminando a metade masculina da Fonte, enlouquecendo todos os homens canalizadores. Assim, quando a trama da saga começa, estamos numa época em que apenas as mulheres são capazes de canalizar, enquanto qualquer homem canalizador é caçado para evitar o cumprimento de uma profecia, cuja predição indica que um homem intitulado de Dragão Renascido conseguirá canalizar e poderá destruir ou salvar o mundo das ações do Escuro.

Com uma mitologia tão complexa e 15 volumes escritos a respeito deste universo, é de se esperar que qualquer adaptação de A Roda do Tempo precisaria fazer mudanças necessárias para comportar tamanho escopo. Enquanto a primeira temporada segue de perto vários eventos dos livros, também faz diversos ajustes em relação a história original. Muitos fãs da saga reclamaram das mudanças, mas até que ponto são reclamações válidas ou estamos perdendo de vista as diferenças entre as linguagens literária e televisiva?


Admito que, por mais que seja fãs dos livros (pelo menos dos que já foram lançados no Brasil), o primeiro deles, O Olho do Mundo, deriva demais dos tropos e da trama de O Senhor dos Anéis. Temos um grupo de personagens que vive em uma vila afastada das grandes nações do mundo, cuja tranquilidade é quebrada com a invasão de criaturas sombrias (Jordan até as nomeia como Trollocs) e logo descobrem que visitantes recém chegados, pouco antes do ataque, são figuras poderosas – se Tolkien tinha Gandalf, aqui temos Moiraine, uma mulher canalizadora que faz parte da misteriosa ordem das Aes Sedai. Embora gradativamente o autor insira elementos mais próprios na história do livro e de suas continuações (abraçando principalmente elementos de culturas árabes e asiáticas), há algo de familiar no começo da saga, e qualquer pessoa que já se aventurou pela Terra Média vai reconhecer.


Mas The Wheel of Time (me referirei à série de TV pelo nome em inglês para diferenciar dos livros) surge num contexto pós-Game of Thrones, e isso é perceptível em algumas das mudanças adotadas. Há mais sangue, violência, mais (sugestão de) sexo e uma abordagem mais adulta em relação aos livros. Não quero dizer que a obra original fosse puritana ou infanto-juvenil, mas fica evidente em alguns momentos que a série faz parte do esforço da Amazon em ter a sua própria Game of Thrones.


Entretanto, isso faz com que ela, às vezes, caia num limbo entre tentar ser mais “séria” do que precisava e conservar desnecessariamente alguns dos elementos mais “juvenis” dos livros, em especial no que se refere aos romances apresentados. Há a sugestão de um triângulo amoroso que a meu ver não agregou em nada à trama; por outro lado, os outros dois casais apresentados (um canônico e outro que é meramente sugerido nos livros) foram trabalhados de maneira superior às contrapartes literárias.


As melhores mudanças de The Wheel of Time dizem respeito não à sua tentativa em ser uma nova Game of Thrones, mas sim quando ela refina e melhora questões já apresentadas nos livros. Como mencionei antes, Jordan incorporou muitos elementos de culturas não-ocidentais na saga, se distanciando da hegemonia europeia, que dominava a fantasia desde os tempos de Tolkien. A série vai além nesse sentido, diversificando seu elenco – do grupo de cinco jovens protagonistas, dois são negros e uma é aborígene australiana, enquanto Daniel Henney, ator estadunidense de ascendência sul-coreana, dá vida à Lan Mandragoran, o Guardião de Moiraine. Além disso, há uma naturalização de relações afetivas não-heterossexuais, como visto no relacionamento poliamoroso mostrado entre uma Aes Sedai da Ajah Verde e seus dois Guardiões.


No que se refere às alterações na trama em si, entramos num território mais delicado, que não necessariamente diz respeito à fidelidade da trama em si. Senti que oito episódios foram pouco para se contar a história necessária para essa temporada, mesmo tendo consciência de que muitos lugares e eventos seriam cortados de qualquer maneira (o primeiro livro tem nada menos do que 800 páginas, e não é nem o maior da saga). Em diversos momentos fica evidente um ritmo irregular, o que não aconteceria se essa temporada tivesse ao menos uns 10 episódios. Porém, sabemos que séries de fantasia não são baratas...


No geral, The Wheel of Time teve uma primeira temporada repleta de potencial, mesmo deixando a desejar em certos aspectos. A maioria dos problemas dela está menos relacionado aos distanciamentos feitos do material original e mais aos seguintes aspectos: roteiro, montagem e efeitos visuais. Refinando esses pontos, tenho certeza de que a série só terá a crescer. Já no tocante à fidelidade ao material original, nunca esperei que 15 livros fossem ser adaptados fielmente, ainda mais com o anúncio de que o plano é de que a série tenha 8 temporadas A julgar pelos ganchos deixados ao final da primeira temporada, parece nítido que a próxima (já confirmada pela Amazon) adaptará simultaneamente o segundo e terceiro livros. Os mais puristas certamente terão muito o que reclamar, mas como obra televisiva, The Wheel of Time tem a faca e o queijo na mão para ser uma das grandes séries de fantasia da década – até mesmo sem precisar viver à sombra de Game of Thrones –, contanto que aprenda com seus erros e reforce seus acertos.



Sobre o autor


Vinícius Oliveira Rocha é jornalista, mestrando em Comunicação e escritor. Nascido em SP e criado na Bahia e em Sergipe, é um fã inveterado de fantasia e ficção científica e também adora pesquisar sobre a Região Nordeste e suas culturas.




Artigo por Vinicius Rocha
Edição e revisão por Elisa Fonseca
Edição de imagem por Filipo Brazilliano
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