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A Viagem, por Luke Carriconde

Eu sempre desejei conhecer outros lugares, mas não imaginei que esse lugar seria tão longe da Terra. Nasci e cresci em uma cidade muito pequena e, devido a várias circunstâncias, nunca saí de lá, pelo menos, até agora. Essa é minha primeira viagem. Uma viagem que não escolhi e que se pudesse nem faria.

Colagem digital produzida por Maitê Mendonça

Estamos em guerra e, pela primeira vez em muitos anos, tive medo. Nunca fui um cara medroso, entre meus amigos e familiares, todos diziam que eu era o mais corajoso, fui criado no mato e uma vida rural acaba facilitando o embrutecimento. Cuidar de cavalos, vacas, ter que lidar com touros e bichos peçonhentos, acaba nos ajudando a enfrentar o medo, mas nada disso me preparou para o que viria a seguir. Fomos convocados de um dia para outro, tanto os que fizeram quanto os que não fizeram a formação militar básica. Queria ter feito o tão temido tiro de guerra, mas as obrigações da fazenda não permitiam minha ausência. Aprendi a atirar com meu avô e todo treinamento que tenho veio do capitão do mato, com quem eu passava as minhas tardes de juventude. Não sei se isso ajuda em alguma coisa. Não conheço o planeta para onde vamos. Acho que ninguém do meu batalhão conhece, ainda não tive tempo de conversar com nenhum deles. Quando chegamos no quartel, já estava quase na hora de partir, foi tudo muito rápido, vestimos os trajes, recebemos instruções e entramos na nave.


Eu sei o quanto isso parece absurdo. Ainda estamos em 2024, e não teríamos conseguido, nem se quiséssemos, desenvolver algo tão avançado como a nave que estamos tripulando. Há alguns meses, recebemos visitas de astronautas de outros planetas, os oficiais não gostam que usemos os termos antigos e eles nos disseram que todo nosso sistema estava em perigo. A galáxia estava em guerra e, após perdermos as primeiras defesas, que protegiam nosso quadrante, eles tiveram que se revelar, não puderam esperar mais, sem nossa ajuda seria impossível vencer.


Os chefes de estado resistiram um pouco, mas logo aceitaram. Estamos em guerra contra uma civilização que nem conhecíamos. Tudo foi preparado às pressas. As cidades pequenas foram as últimas a serem chamadas. Quando chegou a nossa vez, bilhões de soldados já haviam sido enviados, para vários lugares da galáxia. Nós seríamos a última linha de defesa do nosso setor.


Nos quartéis improvisados recebemos poucas instruções. Todo nosso treinamento foi feito nos planetas aos quais nos destinamos. Viajamos na velocidade da luz, mas não vimos nada. Dormimos a maior parte da viagem, pois a distância era muito grande para que permanecêssemos acordados.


O planeta era muito diferente do nosso. Era desértico e os poucos habitantes que conhecemos ainda estavam se adaptando à ideia da guerra. Assim como nós, eles haviam sido avisados que participavam de uma confederação galáctica há poucos meses atrás. Como nossos índios na Terra, eles ainda recorriam à caça e à pesca, mas de uma forma muito diferente da que conhecemos. Seus peixes não eram capturados por anzóis, mas por um poder concentrado da mente, eram induzidos a saírem de seus habitats e se oferecerem aos nativos.


Outra coisa que achei muito interessante é que após consumirem a carne dos animais, por um tempo relativamente longo, eles assimilavam suas habilidades: alguns adquiriam força ou velocidades sobre humanas, outros se tornavam praticamente invisíveis ou ganhavam asas, assim podiam voar livremente pelo céu .


Todo aquele povo pertencia a uma raça antiga de metamorfos e, embora não conseguissem modificar suas formas físicas, como seus antepassados, ainda conservavam genes capazes de fornecer-lhes outros poderes. Apesar dessas diferenças, eram um povo bastante pacifico e receptivo. Quando chegamos, fomos muito bem recebidos e depois que resolvemos os problemas relacionados à comunicação e às nossas diferenças em relação aos costumes, tudo correu muito bem.


Fomos todos treinados juntos e agora, dez meses depois, finalmente fomos convocados para a guerra. O sistema no qual estávamos, agora contava apenas conosco e com o planeta vizinho para se proteger.


Perdemos muitos homens, mas fomos vitoriosos, os poderes dos nossos nativos fizeram muita diferença. Enquanto lutamos na linha de frente eles lutavam nas selvas. Perdemos muitos homens, mas, hoje, entendendo a natureza da guerra e o que poderíamos ter pedido, eu sei: foi um sacrifício necessário.


Meus parceiros de armas retornaram à Terra algumas semanas depois que vencemos a guerra. Faz mais de noventa anos que não penso nela. Essa foi minha primeira viagem, mas também foi a última, nunca mais quis voltar. Foi aqui, há centenas de milhares de quilômetros da Terra, que encontrei o amor. Nós, eu e minha esposa, vivemos felizes e meus filhos, como os filhos dos filhos deles, ainda escutam minhas histórias sobre o planeta azul de onde vim.


Conheça o Autor Luke Carriconde


Luke Carriconde é professor, escritor, Mestre em Filosofia contemporânea e doutorando em Educação. Quase filósofo, tripulante da nave Coração de Ouro, Enciclopedistas da Fundação e fã incondicional de ficção científica e fantasia. Autor de “Humano Obsoleto Humano” e entusiasta do transumanismo.

@lukecarriconde

Como foram seus primeiros passos na literatura? Meu primeiro contato com a escrita foi em 2010. Nesse ano, eu me mudei de Uberaba/MG para Curitiba/PR e lá comecei a fazer um curso de Licenciatura em Filosofia. Como eu tinha mais tempo de ler e sempre tive a vontade de escrever, comecei a ensaiar meus primeiros escritos, na época, quase totalmente relacionados a temas filosóficos. Em 2010 e 2011, eu consegui terminar meus primeiros e únicos livros até o momento, “Elucubrações de um quase Filósofo” e “Humano Obsoleto Humano”. Depois de terminar esses livros, não parei mais de escrever e, mesmo não tendo publicado nada, tenho vários projetos em andamento.


Então você chegou a publicar algumas obras, certo? Pode nos contar um pouco sobre elas? Meu primeiro livro Humano Obsoleto Humano, na versão física, pode ser encontrado em lojas virtuais, atualmente estou trabalhando em sua tradução e pretendo publicá-lo na versão ebook na Amazon. Tenho um conto natalino chamado “Espírito de Natal”, que foi publicado em dezembro de 2021 na Amazon, pela Arkanus Editora. Este ano, um outro conto, “A Serpente do Velho Chico”, será publicado na primeira edição da revista Samsara. O conto “Espírito de Natal” aborda a importância do Natal como data familiar e propõe uma reflexão sobre o luto e a importância de tentarmos nos renovar, aprendendo com nossas perdas. O conto “A Serpente do Velho Chico” é uma adaptação regional do Ragnarok, na qual Thor luta com a Serpente do Mundo Jörmungandr, anunciando o fim dos tempos. A ideia do conto é mostrar o quanto os mitos, lendas e histórias antigas são importantes. A pretensão é incentivar a leitura dos originais. O livro “Humano Obsoleto Humano” tem uma pegada mais filosófica e pretende mostrar quais são os perigos, malefícios e benefícios da tecnologia e do movimento transumano. No livro, tento descrever as possibilidades que o processo de transumanização da humanidade nos ofereceriam e o quanto elas nos distanciariam daquilo que consideramos ser nossa humanidade.


Você consegue fazer um panorama geral das histórias que já produziu e apontar elementos e temáticas recorrentes? Eu adoro tudo o que está relacionado às ciências humanas, de modo geral. Meus temas de maior interesse são filosofia, teologia, religião, sociologia, tecnologia, ciência e história. Meu primeiro livro, “Humano Obsoleto Humano”, é classificado como um livro de antropologia filosófica. Meu objetivo quando escrevi não era produzir uma obra literária, mas foi o que acabou acontecendo. A ideia inicial seria produzir um livro de não ficção para discutir as ideias do movimento transumanista. À medida que o livro foi sendo desenvolvido, percebi que a melhor forma de discutir essas questões seria através de um diálogo platônico e isso modificou todo o projeto. É, por isso, que o livro tem duas partes, na primeira me dedico a discutir as proposições filosóficas do transumanismo, por meio de um diálogo, e na segunda começo uma história sobre o primeiro transumano, Devin1. Essa é uma história que pretende desenvolver melhor em outros livros sobre essa assunto.


Existe alguma mensagem que busca passar ou que você mesmo acaba aprendendo com sua escrita? A maior parte das minhas histórias tem como pano de fundo a filosofia, questões existenciais, temáticas sci-fi, tecnologia e religião. É nessas áreas que me sinto mais à vontade e é nelas que acredito poder propor reflexões sobre esses assuntos. Atualmente, estou me aventurando no gênero terror, policial e fantasia. Pretendo publicar muitos contos esse ano e continuar participando de concursos, antologias e coletâneas. Nesse ano, também espero poder me dedicar mais à Fundação 42, um blog no qual pretendo discutir todos esses assuntos e publicar periodicamente resenhas e artigos de opinião.


A gente pode passar para a parte mais técnica? Me conta como funciona seu processo de escrita? Eu uso a definição do Martin das Crônicas de Gelo e Fogo sobre escritores para me definir. Ele diz que existem os escritores jardineiros e os arquitetos. Os primeiros vão descobrindo o texto à medida em que escrevem e o segundo planeja primeiro, só depois escreve. Eu me considero um escritor jardineiro. Tenho a ideia e começo a escrever. Antes que a ideia venha e eu tenha como que um clarão sobre a história eu não começo a escrever. Não costumo planejar minhas histórias. Depois que começo a escrever, elas costumam se escrever meio que sozinhas.


Cabe perguntar também sobre autores e obras que você percebe corroborarem com a construção das suas narrativas, e de que forma voce sente que te influenciam? Os autores que mais influenciaram foram Hermann Hesse, Ernest Hemingway, Isaac Asimov, Philip K. Dick. Douglas Adams e Machado de Assis. Asimov me ajudou a entender meu fascínio por robôs e por tudo o que se relaciona com o futuro da humanidade, Hemingway me ensinou o poder da síntese e de uma linguagem sem tantos adjetivos e advérbios, (detalhe, eu simplesmente adoro escrever usando os dois), Adams me apresentou a possibilidade de inserir o humor non-sense em minhas narrativas (pretendo fazer isso muito em breve, já tenho alguns trabalhos iniciados que se inspiram nele), Machado me mostrou o que um gênio é capaz de fazer com as palavras, eu o acho mais que genial, ele é simplesmente perfeito, histórico, ácido, inteligente, sarcástico, bem humorado e absurdamente crítico, Machado é perfeito, lê-lo e relê-lo me faz um escritor melhor, por último, mas não menos importante, vem o Hesse, ele encarna tudo aquilo que eu gostaria de fazer com as palavras e narrativas, seu livro Sidarta me arranca lágrimas todas as vezes que o leio. Sidarta pra mim é um obra de arte sem igual, me emociona e me impressiona, é por causa do Hesse que gosto de escrever sobre temas filosóficos e esses são um dos temas que mais gosto. Obviamente existem outros, mas esses são o que produziram o Lucas escritor.

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Edição de Elisa Fonseca

Revisão de Gabriela Marra

Entrevista por Filipo Brazilliano

Arte de vitrine por Maitê Mendonça


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