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Bom dia, Verônica!

Atualizado: 19 de ago. de 2021

ATENÇÃO: esta resenha contém aspectos da estória contados apenas pela série audiovisual. É importante ressaltar que o tema tratado não é fácil de digerir, contém gatilhos e é recomendado para maiores de 18 anos. Também contém spoilers. Dito isso, sigamos:


Estamos em um período de transição dos velhos tempos para algo incerto. A série Bom dia, Verônica, estreou na Netflix no dia 1 de outubro de 2020 e traz esse contexto para a vida de Verônica Torres, uma escrivã da polícia civil.


A primeira temporada conta com 8 episódios escritos por Rafael Montes e Ilana Casoy (autores do livro homônimo, lançado em 2016, porém sob o pseudônimo de Andrea Killmore). A produção é nacional, original da plataforma de streaming e dirigida por José Henrique Fonseca, Izabel Jaguaribe e Rog de Souza.

Verônica é uma mulher casada, mãe de dois filhos adolescentes e leva sua vida normalmente até que uma mulher comete suicídio na sua frente dentro da delegacia de homicídios, na cidade de São Paulo. Esse é o ponto que lhe impulsiona a se envolver em dois casos de violência contra a mulher.



No desenrolar dos fatos, aprendemos que apesar de ter habilidade, inteligência e criatividade na área investigativa, sua função na verdade é a de digitar, arquivar e digitalizar depoimentos e documentos e é por seus apontamentos sagazes e interesse sobre o assunto, que certos aspectos da investigação avançam.


Contudo, seu sentimento de compromisso com a justiça não condiz nem com sua realidade cotidiana e nem com sua própria capacidade de colocar isso em prática. A cada episódio, se torna cada vez menos possível a resolução das coisas pelos comuns meios legais, apesar do esforço a justiça sempre parece distante.

Ela tem problemas emocionais mal resolvidos com seu passado, que claramente a afetam no presente. Não se encaixa no clichê de louca histérica descontrolada, apesar das deixas. Mas também não tem expertise para dar altivez eficaz às suas investidas em alguns momentos.

Mesmo com o auxílio de seu fiel escudeiro, Nelson (o menino do TI), o sentimento é de batalha solitária. Ninguém liga pras investigações tanto quanto ela. Toda a sua força e energia estão focadas em solucionar os casos. E, por vezes, erra na curva da empatia e perde o senso da realidade fria que enfrenta. Sentimos a agonia quando uma das vitimas diz na sua cara que "ela não pode fazer nada, que não sabe de nada".

Apesar da nossa vontade, Verônica não posa de heroína. Tem muita frase de efeito, muita pose de feminista desconstruída, mas Tainá Muller não permite que ela seja um clichê ambulante. O perigo que se agiganta ao seu redor é real. A corrosão que ela acompanha na vida das vítimas, em determinado momento atinge sua vida em cheio. Respinga no seu casamento, na segurança dos filhos e na sua estabilidade mental. Esse desgaste psicológico sobrecarrega Verônica e desnorteia suas boas intenções em exageradas (e trágicas) consequências.

A série segue o clichê de mostrar o sistema brasileiro como corrupto, atravancador e privilegiador dos ratos sem alma. Porém, a repetição de reforçar os entraves burocráticos do sistema e a paranoia da sociedade secreta, alivia o peso da responsabilidade pessoal que a personagem sente em algumas de suas decisões precipitadas. E esse recurso de desvio, talvez tenha nos tirado também a força de impacto que a decisão final poderia significar. Aparentemente, a série não quis escancarar no que se tornou a mulher depois desse processo todo. Medo de admitir que a jornada tenha formado uma assassina em série ou uma justiceira atormentada? Acontecerá a metamorfose para uma futura heroína com sua redenção na continuação? Parece uma escolha consciente caminhar nessa zona cinza pra esticar a história pra segunda temporada.


Produção e elenco


Um aplauso para a fotografia e cenografia da série. A apresentação do mundo e percepção das coisas de Janete é sensacional. Na primeira vez em que conhecemos sua casa, temos a impressão de estarmos vendo a história recuar no tempo. A mobília, as cores, as roupas, tudo nos leva a crer que estamos dentro de um flashback. Esse acabamento caprichado reforça o estado alienado que ela se encontra: presa num mundo paralelo, retrógrado e antigo que dá o triste toque final para o que significa aquele lugar, uma linda, clássica e fofa gaiola.


O figurino é acertado: Brandão está sempre de roupas esportivas. Parece que ou acabou de chegar de uma corrida ou esta prestes a sair pra uma. Acentua a característica de predador preparado pra tudo. Janete se veste de forma quase infantil: cores berrantes e acessórios de plástico. Brandão não permite que ela saia de casa, além de comprar comida e controla cada centavo do que ela gasta. Logo, faz sentido que ela se vista como uma Barbie. Combina com a casa falsa de bonecas que a mantém presa.

O esforço de apresentar uns, contrasta com o desleixo de inserir outros personagens como Anita (Elisa Volpato), que se veste como se trabalhasse em uma agência de publicidade. A irmã Nice, que parece ter saído de uma revista adolescente dos anos 90. E todos os outros se vestem igualmente monotônicos: homens se mantem de roupa social ou de jeans, camiseta, tênis e moletom em tons escuros, inclusive Verônica. É apático.


Brandão e Janete (Eduardo Moscovis e Camila Furtado) são um deleite pros olhos. Terminei a série apaixonada por Edu e com ódio de Brandão. Ele é largo e alto, voz grave, já possui uma presença intimidadora. Usa recursos sutis para dar forma às violências subliminares: o tom de voz, meios sorrisos e o silêncio pra criar um ambiente tenso e aterrorizante. Em uma cena em que esta jantando com sua esposa , sem dizer sequer uma palavra, instala-se uma atmosfera de medo e ansiedade muito presentes. Por alguns segundos, nos sentimos como se fossemos a própria Janete. Não sabemos do que aquele homem é capaz.


Camila Morgado foi certeira ao demonstrar a situação de uma mulher que sofre violência doméstica. Dá um show de atuação, em seus olhos, em sua empertigação do corpo ou em suas falas falhadas e oscilantes. Geralmente um tema tão sensível é difícil de ser transmitido com eficácia mas ela cumpre o dever. Sentimos a claustrofobia de viver presa na gaiola que Brandão lhe impôs. Fisicamente, trancando portas e janelas ou mantendo-a num constante estado de não-saber. É muito forte perceber que ela está tão sob controle do marido, que não tem a menor noção nem mesmo do passado dele.

Uma cena que me deixou com um nó na garganta é quando Verônica tenta entrar na cabeça de Janete, usando todas as palavras que uma feminista usaria pra convencê-la a sair da sua prisão. Mas a passarinha, simplesmente se abraça na negação, assume toda a culpa, pede que ela vá embora e ainda ameaça dizendo que se não sumir, vai contar tudo pro Brandão.


Netflix e assassinos seriais


O catálogo da rede de streaming tem vários exemplos recentes de como o público tem se atraído por serial killers. Talvez fosse só questão de tempo para que o livro fosse descoberto. Existe um público fiel para narrativas criminais, então estamos acompanhando um produto do mercado de fanservice?

Mesmo que Bom dia Verônica esteja á disposição na mesma categoria, fica sempre a impressão que tudo foi feito sob uma justa medida. Da mesma forma que a São Paulo da série é limitada, a violência aparece apenas para transmitir a mensagem. Pronto. Não há gore gratuito. Nem alívio cômico.

A estória se leva muito a sério, tem responsabilidade com o tema e se encarrega de nos mostrar com quem estamos lidando, qual realmente é o perigo que está diante de nós. O culpado do crime tem nome e rosto. Sem romantização. Talvez possamos chamar Ted Bundy de serial Killer, mas não parece justo chamar Brandão da mesma coisa, em inglês.


Assim como o machismo aqui não é algo comum de se admitir, tampouco deva ser a possibilidade de imaginar uma pessoa próxima de você possuir o desejo por múltiplos assassinatos. No Brasil esse não é tema de conversa de bar. E é interessante notar que Brandão é um coronel da polícia militar durante o dia e assassino de mulheres á noite. Um tipo de criminoso inteligente, disciplinado e muito organizado.

Durante a investigação e crimes dessa natureza, faz parte da premissa do perfilamento incluir como básicas essas características. Brandão ser Tenente Coronel é uma ponte que dá o recorte certo para o personagem. A gente ouve coisas como "não mexa com essa gente de farda", "o cara é de alta patente", etc. Funciona como uma "carteirada", Verônica é intruída a esquecer o assunto. Não tem como um psicopata ser mais ameaçador e assustador do que quando se esconde por trás da pose de bom marido e cidadão de bem. Pior, o cara é um herói né? Matou seis bandidos uma vez.


E se Verônica tivesse sido a escrivã do caso Mariana Ferrer?


Em um mundo perfeito, André Aranha (acusado de estuprar Mariana Ferrer) teria sido condenado apropriadamente, após análise profissional das evidências. Mas não vivemos num mundo perfeito. E, mesmo Verônica, não teria feito qualquer diferença. A única mulher em evidência no caso foi Mariana, do pior jeito possível. Comprovando em alto e bom som, que o nosso sistema não é justo. Seja na vida real ou na ficção.

Verônica trilhou o caminho de declínio de sua sanidade pra algum estágio que não sabemos ainda qual será. Jung diz que a compreensão de algo maligno externamente necessita que nós mesmos abracemos o que há de maligno em nós. Se o objetivo da segunda temporada for a personagem abraçar a própria sombra, tem muitas questões para resolver.


Em tela, para além dos detalhes do enredo, da cenografia, fotografia, trilha sonora, temos também uma oportunidade de ouro para que se reflita urgentemente esse elefante branco na mente coletiva brasileira: a violência doméstica. Um tema delicado que na abordagem não cometeu o erro de ser leviano. Bom dia Verônica é uma celebração de sucesso da literatura e do audiovisual brasileiros. Uma produção de alto nível em praticamente todas as categorias, marcante e densa, porém altamente indicada para consumo moderado. Está na mesma linha de documentários, filmes e séries do gênero policial. Vale a pena conferir com os amigos, pois é uma série de roer as unhas e debater depois.



Artigo por Patrícia Carmezim

Edição e revisão por Elisa Fonseca

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