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Casa 306, por Julia Rietjens

Atualizado: 4 de ago. de 2021


@Mysticart


Samuel trabalhava como carteiro há mais de 15 anos na mesma cidadezinha de 12 mil habitantes do interior de São Paulo. Por sua experiência, conhecia todos os bairros, cumprimentava quem encontrasse na rua como se fosse amigo íntimo e mantinha amizade com boa parte dos moradores do bairro Da Luz.


O homem tinha um apreço especial pelo bairro por conta das suas casas de muro baixo e pessoas sorridentes que vinham recebê-lo na porta. Samuel gostava de pensar que tinha o poder de trazer felicidade em suas mãos, por conta da alegria que os moradores mostravam ao ter suas encomendas entregues.


Havia só uma coisa que estragava os momentos que passava no bairro Da Luz: a casa 306.


Apesar de Samuel nunca ter visto ninguém no local, havia cartas a serem entregues todos os dias na casa. Naquele fim de tarde não foi diferente. Depois de entregar as demais encomendas, sobrou apenas o pequeno envelope amarelado em sua bolsa.


Samuel caminhou até o sobrado cuja cerca era tão baixa que ele poderia muito bem passar a perna por cima e invadir o terreno sem problema algum. Ele não faria isso, é claro. Se contentou em simplesmente observar a construção de dois andares.


O telhado cinza, as janelas com a tinta descascando sempre fechadas. Plantas trepadeiras subindo pelas paredes externas, escondendo a madeira escura de outrora. E o gramado mal cuidado circundando o sobrado, a grama crescendo quase além dos limites da cerca, as plantas mortas e com ar sombrio.


Toda vez que Samuel parava por ali, sentia um arrepio surgir em sua nuca. Pouco se falava sobre a casa. Os moradores do bairro Da Luz simplesmente fingiam que o lugar não existia, embora Samuel já tivesse visto um ou outro mudando de calçada para não passar em frente ao casarão.


Isso porque ouvia-se barulhos estranhos com mais frequência do que Samuel gostava de admitir. Uma madeira estalando, uma porta batendo, uma gralha gralhando. Mas o pior era quando Samuel ouvia os gritos.


Agudos, sofridos, pedindo por socorro. Implorando por ajuda e misericórdia.


A polícia já fora chamada tantas vezes, apenas para não encontrar ninguém na casa, que os moradores e Samuel desistiram de ligar para as autoridades. Mas os gritos continuavam. Exceto naquele dia. Enquanto o crepúsculo surgia, a casa permanecia em silêncio.


As cartas estavam tão acumuladas na caixa de correio que Samuel não sabia onde colocaria mais aquela. Estava matutando sobre esse dilema, tanto que sequer se deu conta de que o sol estava se pondo, deixando o sobrado com uma aparência ainda mais sombria. Só foi perceber o horário quando ouviu alguém chamá-lo.


— Samuel... — O nome soou como um sussurro, mas o fez levantar os olhos mesmo assim, pois tinha certeza de que o chamado vinha direto da casa.


O sobrado continuou sem movimento algum. Apenas o leve farfalhar das árvores de galhos secos ressoava.


Samuel apertou a carta com força, olhando novamente para a caixa de correio abarrotada. Sua curiosidade era intensa. Quem escrevia tantas cartas à uma casa vazia? Sentia pena. Palavras foram feitas para serem lidas.


— Samuel... Abra a carta... — o sussurro voltou, mais alto dessa vez, junto com outro barulho.


Uma porta se abriu.


A porta da frente de madeira velha rangeu. O coração de Samuel pulou uma batida. Lentamente, foi se revelando o interior escuro do casarão, até ficar completamente escancarado. Era impossível ver qualquer coisa no breu do lado de dentro, mas Samuel acreditou enxergar um par de olhos encarando-o.


— Abra a carta…


Ele sentiu as pernas tremerem, mas também havia algo a mais. Uma força que surgia em seu ventre e que não pertencia a si. Samuel tentou lutar. Deu um pequeno passo para trás, o único que conseguiu. Lágrimas surgiram em seus olhos. A força tomou conta de todo o seu corpo, deixando apenas sua mente livre, para que Samuel registrasse tudo o que estava acontecendo.


Ele se viu fazendo algo que nunca havia feito: cometeu um crime federal. Abriu a correspondência de outra pessoa. Sem poder controlar seus movimentos, rasgou a parte de cima do envelope amarelado. Não havia remetente.


Os olhos dentro da casa pareciam se aproximar.


Samuel prendeu a respiração.


Ele tirou a carta com cuidado. Havia apenas uma palavra escrita em letras garranchadas em uma tinta avermelhada, parecida com sangue:


CORRA.




Conto de Julia Rietjens

Ilustração de Mystic Art

Revisão e edição de Elisa Fonseca


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