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Diário de um Verme, por Raphael Carmesin

Atualizado: 21 de ago. de 2021


@liz.under

12 de novembro de 1914.


Mais um dia comum de trabalho em meu escritório: o Cemitério Municipal Nossa Senhora do Carmo, em Leopoldina. O relógio parou para outro vivente. Ouvi todo o sepultamento, as exéquias. Foi sentido, cheio de poesia. Também pudera! Este novo inquilino, dizem, foi poeta e, como todo poeta que se preze neste século, morreu de pneumonia.


E, pelo visto, foi um poeta estranho, extravagante, doido de pedra. Sabiam os senhores que foi a primeira vez que ouvi versos em minha homenagem? Eu e meus companheiros ficamos emocionados. Nunca tinha ouvido falar de poesia para Vermes. Normalmente, somos alvos de pura antipatia, quando não do mais carregado asco. Penso que foi a primeira vez que inspiramos a um poeta.


Está certo que uma vez ele errou, ao dizer, que “Verme” era o nosso nome obscuro de batismo. Não poeta, somos Joãos, Marias, Antônios, Severinos, todos com nomes de batismo e biografia. Porém, isto não desabona teus versos. Neles fomos chamados de tudo um pouco: de “assassinos” (como se pudéssemos matar a quem está morto!); de “glutões” (e isto tem um pouco de verdade, como entre os humanos, há Vermes gordos e vorazes); de “operários da ruína” (o que me tocou bastante, pois acima de tudo somos incansáveis trabalhadores nessa ocupação funérea de transformar a matéria).


De todos os nomes, porém, o que mais me comoveu foi o apelido de “Deus-Verme”. Uau... nunca me tinham tirado por divindade. Fiquei até encabulado com essa carícia na autoestima. Veja, não quero com isso dizer que somos melhores do que os demais companheiros, as bactérias, os micróbios, as moscas, jamais. Não sou de extremos e reconheço o papel de cada criatura na reciclagem da matéria.


Mas deem um desconto para nós, vermes cosmopolitas, que andamos na escuridão das covas, de sepultura em sepultura, lidando com toda sorte de falecidos. Quem mais faria este trabalho por nós? Chamam-nos deuses, mas não temos sacerdotes, nem fiéis. Temos, tão somente, agora, a carcaça de um poeta que cantou as nossas proezas.


Em gratidão por esta sensibilidade, meu caro bardo, faremos o nosso trabalho com brevidade, antes que seu corpo inche e se deforme. Já dei orientações a todos, inclusive às pequeninas larvas. Isto não é um privilégio, procuramos dar a cada cadáver um tratamento equânime. Encare isto, apenas, como uma singela homenagem.


Começaremos o trabalho por dentro, roendo as suas vísceras magras, consumindo as úlceras – devias beber muito poeta! –, o teu câncer que se iniciava. Em seguida, nos dividiremos. Parte começará o trabalho de cavar os ossos: tíbia, clavículas, etc., infestaremos tudo desde o início, porque é a parte que mais demora chegar ao pó.


Um segundo grupo chegará ao teu peito de poeta que, imagino, foi fustigado por uma vida de versos e pneumonia. Eu mesmo irei para lá. Consumirei catarros, húmus, coração, e o deixarei como um salão aberto de festa, mas sem comemoração.


Por fim, subiremos à cabeça, sede das tuas neuroses. Roeremos teu cérebro, epicentro da quimiotaxia, respeitosamente, deixando-te apenas os cabelos na frialdade inorgânica da terra. Quem sabe ali não me inspire e escreva, eu mesmo, versos para ti poeta...



Conheça Raphael Carmesin


Cadáver adiado que procria, é de Belém/PA, onde atua como educador e pesquisador em educação. Tem publicado contos de ficção especulativa, além de crônicas e poesias em coletâneas e revistas literárias pelo país desde 2009.



Quando a literatura entrou na sua vida?


A memória mais antiga que eu tenho sobre o que me tornou um consumidor de literatura vem do hábito de meu pai de ler jornais. O Caderno de tirinhas me atraía muito. Lembro também de folhear muito dois livros em especial: Capitães da areia, de Jorge Amado e a Insustentável leveza do ser da autoria de Milan Kundera. Quando fui alfabetizado mergulhei nos gibis da Turma da Monica de Mauricio de Souza, Zé Carioca (Disney), mas o que mais me marcou em vida foi ter sido presenteado com As Mil e uma noites.


Com onze anos de idade eu tive a iniciativa de comprar Harry Potter da J. K. Rowling, inclusive, porque o protagonista tinha a minha idade, e a gente foi crescendo juntos. Depois disso, me aventurei em Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien.


Na escola, comecei a escrever algumas historias, até hoje tenho agendas preenchidas com projetos de ficções que eu nunca cheguei a terminar. Fazia isso movido por outras historias que lia. Eu tinha uma certa habilidade com redação e participava de todos os concursos que apareciam, até ganhei um na escola e isso serviu de motivação para escrever, mas ainda não queria ser um escritor.


No início da minha vida acadêmica, em 2009, participei de concursos literários. Ganhei com poesias e contos e isto me deu um estalo que poderia ambicionar escrever alguma coisa nesse sentido, talvez terminar algum projeto de literatura que comecei. Até 2015 participei de concursos voltados para literatura, só que depois eu parei, pois tinha me decidido focar em pesquisa e trabalho. Em 2019 que me veio a vontade de ter algo literário e voltei a participar de concursos, só que estava muito longe desse universo de escrita.


Quais são os gêneros e temáticas que você mais trabalha?


A minha porta de entrada para a o mundo da literatura foram os contos. Desde cedo sempre via a facilidade que eu tinha de escrever histórias curtas, até por achar mais simples de produzir, mas depois ter me deparado pela complexidade que existe. Me familiarizei muito com crônicas com o tempo. Ainda não cheguei a pensar em escrever algo mais longo, como um romance. Tenho um projeto de contos que se passa num campo de refugiados, advinda de uma experiência minha de quando tive a oportunidade de trabalhar com direitos específicos que é o direito dos refugiados, principalmente na união europeia. Eu fui para dentro desses campos. A gente dava suporte para admitir e socializar refugiados na sociedade ocidental, ou simplesmente direcionar. Nisso, acabava ouvindo as historias, se são verdadeiras ou não a gente não sabe. Porém, eu fui anotando e as colhendo, já pensei em criar algo longo com contos, uma especial de novelas, talvez, com vários conflitos.


Eu gosto muito de escrever sobre a temática da morte, sabe? Sempre acabo voltando na questão do tempo da degeneração ou na finitude da vida. Também toco bastante na questão do estrangeiro, do estranho, do ruído ou a falta de comunicação, o contraste e o conflito de mundos diferentes, de linguagens distintas. E a questão do exilio.


Quem são os autores que você tem como inspiração?


Atualmente eu tenho lido muita literatura russa. Hoje, tenho revisitado textos com o olhar mais analítico. Como tenho tentado me desenvolver como autor então tenho revisitado Dostoiévski, Tchecov, sem deixar de ler latino-americanos. Tenho muita paixão, por exemplo, por Borges, sempre que tento trazer algo de fantástico nas minhas narrativas, eu penso muito em Borges. E tem um escritor que acho muito interessante para escrever literatura urbana, o Rubens Fonseca. Agora no campo das crônicas o meu predileto é Rubens Braga. Ele tem insights filosóficos que transformam o banal em épico.


Como surgiu o conto Diário de um verme?


Conheci Augusto dos Anjos em "Eu e outras poesias", nesse ano estavam fazendo muitos eventos comemorativos do aniversário do Augusto. Um editor quis fazer um concurso inspirado no autor, e eu já tinha pensado na estética poética dele, foi dai que me veio a ideia.


A Estética do Augusto dos Anjos tem elementos sempre presentes, e um desses elementos é o verme. O Verme é a grande ironia na poética dele, porque o verme é capaz de coisas grandes, mas também é a humanidade que vai ser devorada pelo verme. A constante lembrança de que nós sempre perderemos para o verme e que nós somos finitos, me chama atenção para a coisa orgânica.


Tem um fundo metafisico? Tem. Mas ele sempre ressalta que nós estamos limitados a nossa condição orgânica e bioquímica. Então eu escrevi uma historia na perspectiva do verme. o que o verme teria a nos dizer em uma prosa? Foi um texto curto justamente para transmitir a velocidade da deterioração.

Como você enxerga o cenário da literatura contemporânea e brasileira?


É um cenário de disputa que não pode ser descolado de outros âmbitos, então a gente tem de observar a mudança mercadológica, e quem quer ser escritor no Brasil do século 21, cada vez mais tenho notado isso, de que não se pode ser apenas um escritor. Não pode mais repetir os autores da década de 50, que buscavam editores para os convencer de que tinham um material bom, e se fosse publicado receberia boas resenhas, cada vez mais difícil seguir esse caminho tradicional. Até porque tínhamos Drummond, Machado de Assis, mas quantos escritores não se perderam e ficaram invisíveis naquela época? Agora no século 21 a gente tem um movimento de grande inserção de autores que querem contar historias, e por outro lado, o caminho tradicional não dá conta e talvez não queira dar. Hoje em dia o livro disputa espaço com tanta coisa, por exemplo, com o cinema, com o streaming, E, nessa disputa, editoras querem arriscar cada vez menos, pensando no público, geralmente querem escritores que já venham com base de leitores. Então o escritor hoje além de escrever precisa ser um vendedor do seu próprio produto.


Por um lado sou otimista que tem muita gente entrando, por outro lado o caminho se tornou mais árduo e complexo. De que o escritor tem de ser reflexivo e desenvolver habilidades. Aí, aqueles que não conseguem sentem a exposição tóxica, porque nessa correria entra em questão a performance. Quem não tem uma boa performance, se angustia, se frustra e pode desenvolver alguns problemas. Inclusive, tem um livro chamado A Sociedade do cansaço.


Nesse meu caminho eu tenho ficado contente com o movimento das revistas independentes que tem proporcionado um caminho de visibilidade para muita gente, nesse sentido, eu fico contente, de ver gente voltada para o fantástico ou para crônicas e poesias, de vários gêneros e subgêneros, que é uma forma legal de experimentar novos caminhos da publicação.


Gostaria de parabenizar a Perpétua porque é muito reconfortante ver jovens editores preocupados com a cultura e com produção literária. Quer dizer que de alguma forma a gente vê isso, a cultura respira esse ar pesado, onde a gente não tem o ministério da cultura, tem poucos financiamentos para arte, diante de um quadro desse ver a iniciativa de jovens que estão movimentando um projeto tão importante.



Texto por Raphael Carmesin

Entrevista por Felipe Henrique

Edição e revisão por Elisa Fonseca

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