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Escritores que transformaram lendas brasileiras em livros de horror

Atualizado: 21 de ago. de 2021

Um artigo de Oscar Nestarez e Roberto Beltrão


Arte feita por Robson Strobel (@robson.strobel)

O medo tem a idade da humanidade. Desde os primórdios de nossa jornada no planeta, existe, no nosso imaginário, uma área de mistérios ameaçadores que nada parece capaz de extinguir. E qualquer mistério nasce da dúvida: “que barulho foi esse? O que é aquela luz no horizonte? O que existe depois da morte? Ou antes da vida?” Ao longo do tempo, as respostas foram sendo fornecidas pela ciência. Mas ainda existem aquelas dúvidas que hoje continuam tão inquietantes quanto eram séculos e séculos atrás. A saída para nós, criaturas curiosas que somos, foi inventar possíveis respostas — e acreditar nelas. Assim se manteve viva (e habitada) a zona de mistério da nossa imaginação.


É nesse espaço que residem as lendas e os contos de assombração. Sobretudo no Brasil, onde as histórias de fantasmas e monstros há tanto tempo atrapalham o nosso sono. Nossos pais, avós e bisavós costumavam ouvir narrativas sinistras de seus pais, avós ou bisavós, e essa transmissão tornou-se parte de nossa essência cultural. Prova disso é a importância dada à oralidade em diversas áreas de conhecimento, como Letras, Sociologia ou Antropologia.


Mas houve uma transformação. Com o passar do tempo, esses mitos e lendas sofreram um processo de “infantilização” ao serem recontados. Isso talvez seja resultado do crescente predomínio do pensamento cientificista nos meios intelectuais brasileiros, a partir de meados do século 19. Havia o entendimento de que era importante, para a construção de uma identidade nacional, a preservação da tradição oral; mas as narrativas folclóricas de assombrações seriam colocadas em pé de igualdade com os contos de fadas, as chamadas “histórias da Carochinha”.


Da ameaça à diversão


Se no início da formação da sociedade em terras do Novo Mundo era comum acreditar em monstrengos e visagens à espreita em densas florestas e lúgubres ruínas, por outro lado, em um contexto dominado pela ciência e pelas máquinas, tais crenças deveriam apenas ser vistas como curiosidades. Ou seja, mais divertidas do que ameaçadoras. Assim, o Saci e a Mula sem cabeça, que tanto apavoram os viajantes nos caminhos ermos do interior do Brasil, passaram a ser retratados em ilustrações coloridas, em livros dirigidos às crianças.


É possível que esse pensamento tenha desestimulado escritoras e escritores do país a produzirem obras de ficção baseadas no imaginário popular assombrado. Por aqui, não tivemos um autor como o norte-americano Washington Irving (1783-1859), que, com o seu conto A lenda do cavaleiro sem cabeça, fez, do encontro de Ichabod Crane com a sinistra figura do título nas veredas escuras da Nova Inglaterra, uma das passagens mais lembradas da literatura norte-americana.


Na cena literária brasileira do século 19 e em boa parte do 20, as lendas tiveram pouco lugar. Em um sistema sucessivamente dominado pelo Romantismo com tênue influência do gótico, depois moldado pelo Realismo/Naturalismo e consolidado no Modernismo, houve exíguo espaço para uma produção nacional de romances, novelas ou contos tematizando o pavor provocado pela nossas assombrações mais típicas.


A importância de Câmara Cascudo


Porém, se olharmos mais atentamente, vamos notar que essas histórias existem. São obras de ficcionistas que abraçaram o registro do folclore, dando vida literária às lendas rurais ou urbanas difundidas pela oralidade. E quando falamos em folclore, é impossível não nos lembrarmos do potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-1986). Entre dezenas de livros deixados por ele, destaca-se a Geografia dos Mitos Brasileiro (a primeira edição é de 1947): possivelmente, o mais completo bestiário da nossa “fauna” sobrenatural.


Em um dos verbetes da Geografia, o folclorista e historiador descreve, por exemplo, o quanto poderia ser asqueroso o comportamento do duende conhecido em Minas Gerais como “Mão de Cabelo”: “Esse espectro perpassa pela cama das crianças verificando se urinaram no leito. No meio-sono, sente o fantasma papar-lhes (apalpar-lhes) o sexo com suas mãos estranhas, macias, sedosas e tépidas. São mãos feitas com dois molhos de cabelos”.


Apesar de ser referência básica para os estudos etnográficos brasileiros, Cascudo não foi a figura que mais desbravou essa zona crepuscular que é a junção do registro folclórico com a ficção criada para espantar e maravilhar. No século 20, diversos autores se aventuraram nesse mundo de sombras, criando narrativas de horror “involuntárias”, aparentemente agindo com certa rebeldia inconsciente contra o cânone modernista que predominou no pensamento literário no país.


Ademar Vidal, Gilberto Freyre e o nordeste assombrado


Em 1950, o paraibano Ademar Vidal (1897-1986) publicou o livro Lendas e Superstições, uma vasta coleção de “contos populares brasileiros” nos seus diversos cenários: litoral, várzeas, brejos e sertão. No texto Fogo Morto, por exemplo, Vidal descreve a decadência de um engenho de cana-de-açúcar depois que o seu dono cai em desgraça financeira. O ambiente da propriedade abandonada se torna tão lúgubre quanto os escombros de um castelo medieval europeu: “...aquilo é até mal-assombrado; ouve-se a voz noturna dos espectros, sombras furtivas que saem de um canto para outro canto, rápidas de fazer arrepio no corpo; no silêncio solene da noite, a melancolia invade as almas que espiam aquela moita em descanso, imobilizada e sem o mínimo sinal senão de que a ruína tomou conta de tudo num avassalamento penoso.”


O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) também nutria grande interesse por lendas macabras e histórias de fantasmas. No prefácio de uma das tantas edições da sua obra mais conhecida, Casa Grande & Senzala (1933), Freyre revela ocorrências estranhas em um casarão do século 17, sede de um engenho em Pernambuco que havia sido abandonado: “eram barulhos de louça que se ouviam na sala de jantar; risos alegres e passos de dança na sala de visita; tilintar de espadas; ruge-ruge de sedas de mulher; luzes que acendiam e se apagavam de repente por toda a casa; gemidos; rumor de correntes se arrastando; choro de menino; fantasma do tipo cresce-míngua”.


Mas Freyre foi muito além no campo do sobrenatural. Em 1955, publicou um livro totalmente dedicado ao tema: Assombrações do Recife Velho. São mais de 30 instigantes crônicas sobre as fantasmagorias da capital pernambucana — um velho teatro assombrado, tesouros revelados por almas penadas, espíritos pecadores em desespero pedido missas e orações, lobisomens perseguindo mulheres, um morto-vivo abordando passantes nas ruas à noite, e por aí vai. Textos que recontam, de forma muito particular, as lendas e os “causos” pertencentes ao imaginário dos moradores da cidade, ou mesmo ocorrências inexplicáveis que chegaram a ser registradas pela imprensa nas primeiras décadas do século 20.


Entre tantos relatos, chama a atenção como Freyre, um escritor de muito recursos, explica os sofrimentos de um fidalgo que tinha frequentes encontros com o Diabo em função de um pacto misterioso: “E quando voltava do encontro com o Maldito, durante horas parecia que o barão ia botar a alma pela boca, de tão mortalmente fatigado. A alma e o sangue, pois o seu rosto era então o de um cadáver e suas mãos, também, as de um defunto”.


Jayme Griz e o horror dos canaviais


Outro escritor pernambucano, contemporâneo de Freyre, aprofundou a relação entre criação literária e histórias populares de assombração. Com a credencial de “folclorista”, Jayme Griz (1900-1981) produziu contos sobre os fantasmas da região canavieira do Nordeste que envolvem o leitor numa espiral de pavores — pura literatura de horror, mesmo não se apresentando como tal.


Um das noveletas de Griz narra a desventura de um caixeiro-viajante que se vê obrigado a pernoitar num casarão habitado por um espectro horripilante: “...uma figura de pesadelo, entre o ser humano e o ser do outro mundo, em cujo rosto barbudo e terroso se destacavam duas enorme órbitas vazias. Não tinha lábios, mas só dentes expostos de caveira. O queixo do fantasma oscilava como se fosse cair, deixando ver o vazio larga boca sem língua. Seus enormes dentes cor de terra se tocavam produzindo um lúgubre ruído de osso atritando”. O texto consta no livro O Cara de Fogo (1969). Por sinal, o conto que batiza a coletânea trata da aparição de uma cabeça flutuante em chamas que surge numa das curvas de uma velha estrada de ferro.


Mineiros e paraenses também contam


O jornalista e escritor mineiro Lincoln de Souza (1894-1969) coletou histórias sobrenaturais repetidas pelos moradores da sua cidade natal, São João del-Rei. Os relatos foram compilados no livro Contam que…, escrito em 1920 e que chegou a ter 12 reedições. Lembrando o cenário de ruas estreitas, calçadas com pedras irregulares e casario colonial do município histórico, Souza tece relatos curtos e impactantes. Narra, por exemplo, o macabro caso da senhora rica do século 19 que serviu ao marido, sem que ele soubesse, um prato com o coração de uma jovem negra escravizada — uma vingança infame motivada por ciúme doentio.


Outro relato é o do padre chamado por um paroquiano para tirar da boca de um recém-falecido a hóstia que havia sido posta lá por fiéis piedosos. “O pobre pecador comungou sem que se houvesse confessado, momentos antes de morrer”, uma falta grave que não deixaria a pobre alma descansar em paz. O pároco cumpre o pedido no estranho velório, que não era acompanhado por ninguém. E, logo depois de remover a hóstia da boca do cadáver, entendeu de quem se tratava o homem que pediu o seu auxílio: “Ele já vira alguém com aqueles mesmo cabelos empastados, aqueles olhos amortecidos, aquela boca repuxada e sem cor (...) e quase desmaiou num pavor, num arrepio de morte: o homem que o fora chamar, o que estava ali à sua frente, não era outro senão o que jazia momentos antes dentro do caixão — o defunto…”


Já Walcyr Monteiro (1940-2019) foi o cronista das lendas urbanas da capital do Pará. Em sua obra mais conhecida, Visagens e Assombrações de Belém (1986), o jornalista e folclorista reúne várias histórias sobrenaturais repetidas nas conversas dos moradores da cidade. Gritos fantasmagóricos numa pedreira, vultos numa antiga ponte de madeira sobre um igarapé, aparições de um padre sem cabeça, um fantasma revelando a localização de uma “botija” (o tesouro escondido das alma penadas), o espectro de moça sem rosto: esses são apenas alguns dos relatos ficcionalizados.


Entre todos os capítulos de Visagens e Assombrações de Belém, destaca-se a descrição da mais conhecida assombração local: "A Moça do Táxi". À noite, uma jovem sozinha em uma avenida deserta chama um táxi e pede ao motorista para levá-la ao Cemitério de Santa Izabel. Chegando lá, ela diz que está sem dinheiro. Então, pede ao taxista para que vá receber, no dia seguinte, a quantia em uma determinada residência, e entrega a ele um papel com o endereço. Pela manhã, o sujeito vai à casa indicada, e lá a família revela que a tal moça era uma filha morta há anos, que, nos dias em que fazia aniversário, costumava ganhar do pai um passeio de táxi por Belém. Para provar, o pai e a mãe levam o motorista ao cemitério, onde mostram a ele a foto gravada no túmulo da jovem.


Lendas vivas


Graças a trabalhos como esses, perdura uma certeza: as lendas, as assombrações e o folclore no geral continuam vivos em nosso imaginário, seja inspirando o horror, seja em outros campos da ficção. Há períodos em que parecem perder força, mas há outros em que ressurgem poderosos e reimaginados por artistas contemporâneos. Prova disso é o sucesso da série Cidade Invisível, de Carlos Saldanha, que estreou em fevereiro na Netflix.


Na literatura de horror, escritores e escritoras atuais destacam-se ao utilizar essa rica tradição para assombrar. É o caso da historiadora mineira Angela Leite Xavier, autora de Tesouros, Fantasmas e Lendas de Ouro Preto (2009), uma coleção de narrativas envolvendo personagens históricos e seres fantásticos que teriam sido vistos nos arredores do município secular: Mãe do Ouro, Saci, Lobisomem, Mula Sem Cabeça, além de diversos fantasmas vistos em igrejas e casarões seculares.


Já o escritor potiguar Márcio Benjamin aposta na oralidade para narrar causos assustadores cujo cenário é o sertão nordestino em obras como Maldito sertão (2012) e Agouro (2020). E, no romance Terra de sonhos e acaso (2019), o paulista Filipe de Campos Ribeiro povoa uma cidade fictícia do interior de São Paulo com sinistras criaturas de nosso folclore. A eles, soma-se um número crescente de ficcionistas que vêm explorando o imaginário brasileiro para compor histórias de puro assombro — cultivando e exaltando, assim, os mistérios que sempre farão parte de nós.


*Texto originalmente publicado na revista Galileu e fornecido pessoalmente pelos autores.



Conheça os autores


Oscar Nestarez


Oscar Nestarez é paulistano, formado em Publicidade e Propaganda na ESPM e com especialização em História da Arte na FAAP-SP, se dedicou à labuta da escrita primeiro como redator publicitário e depois com a ficção literária, através de antologias e romances diversos.




Como você entrou em contato com esse universo do Horror?


Não foi uma escolha. Eu sempre fui fascinado por ler livros e assistir a filmes de horror. Fascinado por tudo que me causava medo, mas por medos que eu identificava como seguros. Não medos como ameaças reais, ladrões, incêndio, essas coisas. Medo de coisas que no fundo eu sabia que não existiam. Eu sou muito cético. Não acredito no sobrenatural, mas acredito no poder de uma boa história quase me convencer. Desde muito pequeno eu sou assim.


Desde antes mesmo de ler ou escrever. Isso exerce um fascínio sobre mim. E aí quando eu comecei a ler, escrever e desenhar. Eu sempre desenhei coisas muito sinistras. Foi natural, quando eu comecei a escrever. O que eu escrevo é horror, daí a gente pode subdividir os gêneros.


Quais elementos e temáticas são possíveis de encontrar em sua obras?


Eu acho que é bastante variado. Eu escrevo muito conto. Tenho duas coletâneas de conto terminadas, "Sexorcista: E outros relatos insólitos". São quatro contos aí. Na verdade uma noveleta e uma de um conto mais extenso, em 2014. Depois eu tenho "Horror adentro" que é uma coletânea de 13 contos. Eu participo de muitas antologias. Acredito que eu tenha ao todo uns 35 contos escritos. Então nesses contos eu procuro abordar as mais diversas temáticas, monstruosidades, fantasmas, zumbis, vampiros. Enfim, eu procurei abordar muitos elementos e temáticas, alguns com aproximação um pouco mais gótica. O que eu procuro trabalhar mais mesmo é a de cunho psicológico, uma coisa menos visual, menos gráfica, menos detalhada, que perturbe mais a mente do leitor ou da leitora. Mesmo que eu trabalhe com fantasmas vai ser algo um pouquinho mais abstrato, que se confunde com a perturbação mental de um personagem.


Muito do que a Shirley Jackson fazia. Costumo focar nesse aspecto psicológico de perturbação mental. O exemplo maior acho que é "Bile negra", meu romance em que você tem uma epidemia de depressão. As pessoas se contaminam pelo olhar, Existe essa substância que ocupa que domina as pessoas. o excesso dessa substância causa depressão e em último caso a loucura, transtornos psicológicos pesados. Esse é o exemplo maior de representação do meu trabalho



O que tem te instigado na literatura ultimamente? Quais têm sido seus interesses, estudos, obsessões?


O que me instigou recentemente foi uma ligação entre conceitos psicanalíticos e horror, que está na Apple+, especificamente em uma série chamada "Servant". É uma série que trata sobre uma questão de luto, objetos transacionais... Inclusive, escrevi um artigo para a Galileu.


Eu acho que mais e mais me interessam essas ligações de conceitos psicanalíticos, como unheimliche, infamiliaridade, estranhamento... Isso sempre me interessou. Eu me interesso pela literatura de horror brasileira contemporânea, porque esse é o meu objeto de estudo no doutorado e nas duas primeiras décadas do século 21 é isso que tem me instigado.


Quais são os seus projetos atuais?


Tem um livro novo que se chama "Claroescuro", pela editora Draco. Ele faz parte de uma coleção chamada Dragão Negro, só de livros de horror nacionais. O primeiro foi o da Paula Febbe, meu livro é o segundo, depois vem do Jaime Azevedo, da Larissa Prado, do Marcelo Augusto Galvão e do Cirilo Lemos.


Tem a coletânea "Narrativas do medo". São três volumes reunindo nomes envolvidos com horror. A iniciativa é do Vitor Abdala. As primeiras edições são de 2017/2018 e agora estão sendo relançadas por outra editora, a AVEC. Tem um conto inédito, escrevi uma reedição. O terceiro volume foi recém lançado.


Um projeto novo que me empolgou muito, também, foi o "Arsène Lupin contra Herlock Sholmes". Foi minha primeira tradução francês-português, pelo grupo editorial Novo Século.


Tem mais um que atuei como tradutor Robert Aikman, que está em campanha pelo catarse. Um autor britânico inédito no Brasil. Um absoluto mestre do horror, do fantástico e do insólito. Ele vai ser publicado pela primeira vez no Brasil. Já faleceu, mas é um grande autor, idolatrado por Neil Gaiman, Mariane Henriques, Peter Starw. É fundamental que leitores brasileiros o conheçam. Tá no catarse pela Ex Maquina e Sebo Clepsidra, uma parceria entre as duas editoras.


E tem uma coletânea de contos minha para o segundo semestre, que infelizmente não posso anunciar.


Conheça Roberto Beltrão


Roberto Beltrão, visionário, transita por várias linguagens explorando as assombrações que permeiam o imaginário popular. Jornalista, escritor e editor do site O Recife Assombrado. Há quase vinte anos pesquisa o rico imaginário pernambucano com seus singulares mitos e lendas.


Quais gêneros sua ficção envolve?


Como ficcionista, minha produção está na maioria dos casos voltada para o que se costuma chamar de "Folk Horror". Ou seja, narrativas com a intencionalidade do horror e baseadas em mitos e lendas do imaginário brasileiro. Mas faço uma ressalva: considero que a minha ficção, assim como de outros colegas aqui do Nordeste, não é uma versão local dos modos literários consagrados do gênero (como os maravilhosos Poe, Lovecraft, King ou Barker). Penso que meus contos trazem uma farta carga de espanto e, ao mesmo tempo, refletem uma certa naturalidade da cultura brasileira no tratar com o que é chamado de "sobrenatural". Analisando o que tenho escrito, vejo traços do horror ao lado de lampejos do realismo mágico, mais típico de criadores como Garcia Márquez, Juan Rulfo e até de Cortázar. Meus contos nesse tom estão nos livros "Na Escuridão das Brenhas" (2013), "A Sinhá e o Diabo" (2019) e "Assombracontos" (2021) - este em parceira com o autor e ilustrador Kiko Garcia. Lembro que outros livros meus sãos estudos ou reuniões de lendas populares: "Estranhos Mistérios d´O Recife Assombrado" (2008) e "Almanaque Pernambucano dos Causos, Mal-assombros e Lorotas" (2014) - este escrito em parceria com a folclorista Rúbia Lóssio.


Quais temáticas você trabalha em suas obras?


Meu interesse pelas lendas assombradas vem da infância, pois, desde menino ouvia muitos relatos - tanto no bairro de subúrbio do Recife onde cresci, quanto nas cidades do interior onde viviam meus avós. Já adulto, me apaixonei por toda forma de literatura fantástica. Depois, como jornalista, fiz uma ampla pesquisa sobre as lendas do Recife e de Pernambuco que fundamentaram meu site O Recife Assombrado e alguns dos meus livros.


O Recife assombrado começou em 2000 como site. Então a gente trabalha essa coisa das assombrações desde essa época, a primeira etapa foi divulgar, pois era um tempo que esse imaginário não era tão conhecido, então a gente partiu do livro de Gilberto Freire e encontrou outras fonte bibliográficas, depois fizemos um apanhado de entrevistas com pessoas para compor textos. Tivemos muita ajuda dos leitores do site que enviavam e-mails contando histórias, e a partir disso reunimos um acervo.

Em 2002 a gente fez o primeiro livro reunindo histórias que estavam no site. De lá para cá, publiquei vários livros usando esse conteúdo. O site sempre foi uma plataforma de apoio para a produção de literatura fantástica. Muitos autores pernambucanos que estão hoje no mercado, produzindo e publicando, começaram em O Recife Assombrado. Temos muito orgulho dessa força que demos. E hoje não estamos tão focados na divulgação do imaginário porque entendemos que ele se consolidou, o pernambucano já aceita como algo positivo, e quando começamos não era assim, as pessoas resistiram dizendo “Ah! Vocês estão dizendo que nossa cidade é assombrada?!”, então tinha uma certa carga contra a gente, e nosso foco agora é a produção de conteúdo: livros, quadrinhos, temos , por exemplo, um trabalho em parceria com uma companhia de teatro através do diretor Paulo André Viana com quem sempre fazemos peças.


Apesar de reinterpretar as narrativas do imaginário popular, as lendas assombradas, procuro falar das questões humanas nos meus textos. Sentimentos como o medo (claro), o estranhamento, mas também a solidão, a incapacidade de comunicação, a culpa, o desamparo, e por aí vai. Estou interessado menos no fenômeno sobrenatural e mais na condição humana que ele reflete. Por meio do fantástico, penso, é possível o autor falar de questões muito palpáveis, angústias que nos atormentam, os desencontros da sociedade.


O que tem te instigado na literatura ultimamente? Quais tem sido seus estudos e obsessões, no momento?


Atualmente estou muito interessado em autores contemporâneos brasileiros do campo do fantástico nos mais diversos segmentos. Cito Márcio Benjamim, João Paulo Parísio, Frederico Toscano, Paula Febbe, Oscar Nestarez (com quem escrevi o artigo para a Galileu), André Balaio (que participou da criação do Recife Assombrado). Estou ainda encantado com Mariana Enriquez (argentina) e o seu magnífico "As Coisas que Perdemos no Fogo". Tem uma geração de autoras latino-americanas que nos trazem textos muito interessantes como Samanta Schweblin. E, também, estou pesquisando os movimentos messiânicos no Brasil, que são uma rica fonte de inspiração - são muitos casos além do Canudos de Antônio Conselheiro; alguns têm relação com o Sebastianismo, uma crença profética que surgiu em Portugal em fins do século XVI e que provocou episódios sinistros no Nordeste brasileiro.


Eu vi que você produziu a versão em quadrinhos do livro de Gilberto Freire, “Algumas assombrações do recife velho'' e que ilustrado por Téo Pinheiro. Como foi essa experiência? Existem outras obras desse tipo com sua participação?


Nesse projeto e outros que envolvem quadrinhos eu atuei como editor. É uma HQ que foi publicada pela editora Global. Partiu de um entendimento com a fundação Gilberto Freire que administra o acervo dele. Com a negociação conseguimos fazer a adaptação de alguns contos. Tem trinta e sete capítulos, alguns foram adaptados os com potencial imagético. O trabalho foi em conjunto com André Balaio parceiro no site, e com o Alagoano Téo Pinheiro.


Sempre trabalhei como editor. Então, a primeira publicação do Recife como projeto que recebeu apoio financeiro do Estado foi uma coleção de livros chamada "Histórias em quadrinhos do Recife assombrado", que contemplou vários quadrinistas de Recife. Esse livro fez bastante sucesso e foi lançado em 2012. De lá pra cá fez outras incursões, como uma versão HQ da Perna Cabeluda pela editora Bagaço.


E depois partiu para produções independente de HQ. Uma revista chamada Malassombro, atualmente com duas edições. A maldição circular em parceria com Luciano Felix, pernambucano. Todos como editor de quadrinhos.


Inclusive, através dos quadrinhos fizemos ponte com o universo Geek e Nerd, participamos durante a CCXP em São Paulo como produtores de quadrinhos.


No filme "Recife Assombrado, você e o André Balaio atuaram como consultores, certo? Como foi essa experiência?


O Filme "Recife Assombrado", do diretor Adriano Portela, entrou em cartaz em 2019. Ele tinha interesse em fazer um filme sobre essa temática e nos convidou para participar, negociamos o nome. Participamos da confecção do argumento e do roteiro. Fomos roteiristas juntamente com mais quatro. O filme foi exibido no cinema, levado a alguns festivais e agora está dentro da programação do canal Brasil e do catálogo do Now. O filme não é uma visão totalmente nossa, tem bastante da visão dos outros roteiristas e do diretor. Mas foi muito importante. Inclusive, o diretor e o produtor nos fizeram participar do filme como atores também (risos). Em um dado momento nós aparecemos sendo entrevistados, pois o filme tem um esse elemento de documentário.


Entrevista: Filipo Brazilliano

Edição: Filipo Brazilliano e Elisa Fonseca

Revisão: Elisa Fonseca


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