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Guia de leituras vampirescas, por Adriana Rodrigues


De vez em quando, as pessoas me procuram perguntando o que eu recomendo que leiam para "entender de vampiros". Esse tipo de indicação é complicada porque depende muito do que você quer fazer com essa leitura e pelo que você se interessa. A construção do arquétipo moderno de vampiros? Como o romance se desenvolveu em histórias de vampiros? Uma visão psicanalítica de vampiros? Quais metáforas sociais os vampiros representam ao longo dos tempos? Vampiros e retratos da sexualidade ao longo dos tempos? Vampiros e temas LGBTQIA+? Vampiros como monstros representando inquietações e medos? Uma lista completa de poderes e fraquezas que vampiros já tiveram na literatura (se for desvairade o bastante para mexer nesse ninho de gatos)? Vampiros que são completamente diferentes dos moldes tradicionais?


Enfim, cada pergunta dessas leva a uma lista diferente de leituras obrigatórias ou recomendadas (assumindo que você quer ler os livros e não apenas ensaios críticos a respeito desses temas). O que eu estou me propondo aqui não é fazer um guia completo para responder a todos os anseios acima, mas um guia com as histórias de vampiros mais influentes por aí e acho que dá uma fundação legal, caso você queira criar histórias com vampiros dialogando com os últimos trezentos anos de literatura.


A ideia é explicar um pouco de cada livro, o que tem nele, porque ele é importante e deixar que você decida quais vai ler e quais vai apenas pesquisar sobre. A ideia dessa lista foi ser bem enxuta e acessível, então evitei recomendar livros sem tradução para o português e livros que, embora importantes, são obscuros e difíceis de achar (vou falar de alguns desses em outro momento). Os livros escolhidos não são necessariamente os primeiros a usar esse ou aquele tropo, eles apenas amarraram vários tropos em uma história só ou foram tão obscenamente populares que até hoje ainda são a introdução de várias pessoas a eles. Se você achar que eu pulei algum clássico de vampiros muito importante, popular e fundante, manda um comentário (então yep, corram os olhos nos comentários, por via das dúvidas).


Isso dito, bora lá! Estou colocando por ordem cronológica da publicação original da história.



Dissertations sur les apparitions des anges, des démons & des esprits et sur les revenans et vampires de Hongrie, de Boheme, de Moravie & de Silesie - Dom Agostinho Calmet (1746)

É de conhecimento mais ou menos geral que vampiros tiveram origem em criaturas folclóricas do leste da Europa. Eles permaneceriam relativamente obscuros, se não fosse um bafafá da imprensa em torno de um suposto caso de vampirismo em torno de 1730. A coisa foi escalando, até começar uma verdadeira vampiromania no século XVIII, ao ponto de irritar Voltaire ("como a galera pode possivelmente estar tão vidrada em uma superstição camponesa no meio da França iluminada pelas luzes da razão???"). No meio dessa confusão, temos essa publicação de um monge francês, Antoine Augustin Calmet, em que ele coleta uma pancada de "causo" de assombração dos países citados no título e tece breves comentários teológicos sobre eles.


Não li o livro todo (é gigante), então não sei dizer até que ponto Dom Calmet acredita ou desacredita de todas as histórias de fantasmas, demônios e anjos, mas ele definitivamente acha que vampiros e outros mortos-vivos são um afronto à fé cristã e não mais que superstição. Isso não impediu o livro dele de ser a fonte primária para a pesquisa de autores de livros com vampiros por mais de um século. Uma coisa interessante é que o livro faz uma separação entre vampiros, revenants e vrucolacas (a figura mitológica grega), que são relativamente diferentes entre si, mas acabam colocados no mesmo balaio no século XVIII. Por exemplo, o Ruthven de Polidori (e de adaptações posteriores do conto) é mais vrucolaca que vampiro propriamente.


Os "causos" do Calmet são uma leitura bem interessante e trazem elementos das lendas envolvendo vampiros que se perderam totalmente no caminho das adaptações posteriores. Falo um pouco do conteúdo desse livro nessa thread do twitter. Alguns pontos altos dos relatos: um vampiro rindo das pessoas que o estaquearam, pessoas virando vampiros depois de comer carne de bichos que os vampiros mataram, vampirismo causado por vermes, vampiros criando uma nova camada de pele por baixo da pele morta, e mais.


Onde acho para ler?

Você pode baixar o original em francês ou uma tradução em inglês no Projeto Gutenberg, de graça, porque é um livro em domínio público. Se não quiser, ou não souber inglês, tem uma tradução dos trechos falando de vampiros no livro Sombras e Sangue, de Maytê Regina Vieira. O livro é uma monografia sobre o livro do Calmet - tenho minhas discordâncias sobre um ou outro ponto dela, mas acho uma leitura legal para você se introduzir no tema. (Não é nenhuma discordância no sentido de achar que ela deu informações erradas, é mais sobre algumas interpretações e conclusões. Não acho que estou certa e ela errada, entretanto não tenho as mesmas percepções que ela sobre algumas coisas e isso é normal, e até saudável na academia.)


Poemas de vampiro do século XVIII (1748-1819)

Desde o caso de Arnold Paole, em 1732 até a publicação de O Vampiro, em 1819, muita água passou debaixo da ponte. O conto de Polidori (mais detalhes abaixo) não foi o primeiro trabalho literário com vampiros, apenas o primeiro em prosa (e que lançaria um zilhão de obras derivadas e imitadores). O primeiro poema de vampiro é de 1748, do alemão Heinrich Ossenfelder, um poema curtinho em que um Don Juan se compara a um vampiro para tentar conquistar uma mocinha que aparentemente não quer nada com ele.


Tem muitos outros poemas dessa época, muitos que não usam a palavra "vampiro" diretamente. O mais famoso deve ser A Noiva de Corinto, de Goethe (1797). É, o mesmo Goethe de Fausto escreveu sobre vampiros, porque CLARO. Ele DIZ que a vampira da poesia é uma empusa, uma criatura grega que seduz e come rapazes, mas a ideia de que empusas são sugadoras de sangue é uma interpretação recente e distorcida. A Noiva de Corinto é muito claramente um poema de vampiros, no diário do autor é referido como "poema vampírico", mas Goethe aparentemente tinha birra da "modinha".


Yep. A primeira história de prosa com vampiros nem surgiu e o fenômeno "não quero ser associado a essa modinha de vampiros, então vou descrever um ser morto-vivo sugador de sangue, mas não usar a palavra com V", já estava a pleno vapor.


Outro poema fundante de vampiros dessa época é Christabel, de Coleridge. Ele é um poema inacabado, então nunca tivemos uma confirmação de que a Geraldine era uma vampira (ela poderia facilmente ser uma fada, ou outro tipo de assombração, ou, em um twist a la Scooby Doo, uma pessoa normal meio sinistra), mas o poema é uma inspiração diretíssima para Carmilla, de Le Fanu (outro que falaremos adiante), então é uma curiosidade interessante.


Tem vários outros poemas que aludem a vampiros ou são sobre seres vampíricos ou que inspiraram autores a escrever sobre vampiros mais tarde: Lenore (Bürger), O Giaour (Byron), A morte e a donzela (Mathias Claudius), dentre outros.


Coloco esses poemas aqui como leitura importante, porque pode parecer que não existiam vampiros na literatura antes do século XIX. Muitas pessoas falam sobre o lendário Encontro da Vila Diodati como sendo o nascimento do vampiro literário e isso é meio que ignorar poesia como literatura. Vampiros já estavam sendo moldados na cultura pop no momento que o poema de Ossenfelder comparou a mordida de um vampiro a beijos pecaminosos ou quando A Noiva de Corinto usa o vampirismo como resultado de um amor tão ardente que a noiva volta da morte para buscar o amado.


Onde acho para ler?

Tem traduções bem boas de O vampiro (de Ossenfelder), Lenore, A Noiva de Corinto e Christabel no livro de bolso Contos Clássicos de Vampiro, da editora Hedra (que, aliás, é baratinho em sebos e tem uma ótima seleção). Para quem não quer gastar, todas essas obras são domínio público e relativamente fáceis de encontrar em uma busca no Gutenberg.



O Vampiro - John Polidori (1819)

Essa é a primeira obra de prosa literária conhecida sobre vampiros, centro de uma controvérsia envolvendo Lorde Byron e seu médico pessoal, Polidori, um dos produtos de um dos encontros literários mais famosos da história europeia. E é também um conto mediano.


Não necessariamente por culpa do autor. O Vampiro foi um desafio literário que uma mulher fez a Polidori, publicado sem que ele soubesse e com autoria atribuída a Byron, com quem ele estava brigado. Para saber mais do drama todo envolvido, só ler essa thread. Quando Polidori viu o conto publicado, tentou acabar com a farsa de Byron ser o autor e propôs edições e alterações. Isso nos leva a crer que o conto foi publicado sem nenhum trabalho editorial sério, o que faz ser meio difícil julgar o mérito literário do autor. Meus rascunhos são uma droga, eu definitivamente não gostaria de ficar famosa com um deles, sem nada mais para mostrar.


Esse conto inspirou uma enxurrada de adaptações e imitações quase imediatamente após ser publicado, dando origem a uma miríade de contos e peças de vampiros em um curto espaço de tempo e inaugurou a segunda fase da vampiromania na Europa. Alguns textos o creditam como sendo a primeira obra a separar a figura dos vampiros, dos mortos-vivos repulsivos de Calmet e associá-los a nobres sedutores, mas isso é debatível.


Para começo de conversa, é preciso pensarmos no que vampiros eram para a imprensa da época e para a literatura da época. O caso de Paole e outros parecidos eram veiculados na imprensa mais ou menos como aliens são veiculados no History Channel: depoimentos "totalmente reais e confiáveis, de pessoas de reputação digna", "experts" discutindo como o vampirismo podia ser biologicamente real ou como era uma daquelas Coisas Que A Ciência Ainda Não Explica(TM) e blá-di-blá (os relatos coletados por Calmet dão uma boa amostra). Então, sim, é provável que na cultura pop, especialmente da Inglaterra e da França, vampiros ainda estivessem ligados a "superstições de camponeses ignorantes" e a tabloides.


Porém, para a literatura da época, particularmente a de língua alemã, vampiros já estavam recebendo carga erótica desde 1748, com Ossenfelder. A Noiva de Corinto e outros poemas já estavam associando vampiros com as sedutoras devoradoras de homens dos antigos mitos gregos. Quando O Vampiro saiu, em 1819, os alemães já estavam sensualizando vampiros há uns bons 70 anos.


Quanto ao primeiro vampiro nobre, bom. Christabel (1816) não é abertamente uma história de vampiros, mas as influenciou bastante e a "vampira" nele é uma nobre.


O que Polidori fez e inflamou as imaginações da época foi atrelar vampiros não só a sedutores genéricos, mas ao Sedutor Gótico Supremo, Lord Byron. A junção dos arquétipos de heróis byronianos (anti-heróis trágicos, sedutores, perigosos, que arrastam mulheres à ruína, geralmente nobres, ricos e bonitos) a um monstro imortal bebedor de sangue, mas que conserva aparência humana e pode se misturar facilmente a qualquer círculo social foi uma coisa poderosa e irresistível. Mas o conto definitivamente não foi o primeiro a criar vampiros sedutores.


No extremo oposto da tendência de superestimar o que esse conto criou, teve a associação de vampiros à palidez. No folclore, vampiros se diferenciam de cadáveres normais justamente por NÃO parecerem cadáveres: ao abrir o caixão, você encontraria um suposto cadáver de pele rosadinha e, em alguns casos, coração batendo e respiração normal (inclusive, uma resenha contemporânea de O Vampiro critica a palidez de Ruthven). A razão de Lorde Ruthven ser descrito como pálido pode passar por uma ou mais das seguintes possibilidades: Polidori querer que ele pareça um cadáver ambulante, associação a Byron (que andou doente e, portanto, pálido, por um período) e o fato de que palidez era considerada atraente nesse período (ao ponto da galera romantizar a consunção da tuberculose por deixar a pessoa pálida).


Eu raramente vejo as pessoas falarem sobre carga homoerótica em O Vampiro e... Ela existe? O nível de fascínio de Aubrey com Ruthven no início do conto é claramente um crush, e o Ruthven meio que age como um amante psicótico rejeitado depois que Aubrey o abandona, matando a namorada dele e arruinando a irmã dele para se vingar. Em adaptações do conto, a coisa é ainda mais forte, como nos trechos que citei da thread ali em cima.


Sei lá, o povo fala de tensão homoerótica em Drácula por conta de UMA fala do Drácula de que o Harker é "dele", que no contexto pode ser só no sentido do Jonathan ser um peão útil, então eu diria que tenho mais evidências aqui no caso do Polidori.


(PS: Todo mundo sabe que a VERDADEIRA tensão homoerótica de Drácula é o bromance entre Lord Godalmig, Quincey Morris e John Seward, além do leve crush professor-aluno de Seward em Van Helsing.)


Enfim, o conto não necessariamente criou vários de seus elementos, mas ele os codificou e popularizou e, por isso, merece uma visita. Além disso, é curtinho, não tem desculpa.


Onde acho para ler?

Como as obras anteriores, ele está em domínio público e de graça no Gutenberg. Caso você prefira em português, quase qualquer coletânea de contos clássicos de vampiros tem esse incluso. O já mencionado livrinho de bolso Contos Clássicos de Vampiro é um exemplo. Se você quiser conhecer mais sobre o autor, o contexto da criação e algumas obras diretamente derivadas, tem o livro que eu dissequei na thread acima: O Vampiro, Edição Comemorativa de 200 Anos, do sebo Clepsidra. É uma edição de luxo meio carinha, mas é cheia de material inédito em português e imperdível para quem é fã de histórias clássicas de vampiros.


Carmilla - Sheridan Le Fanu (1872)

Fazemos agora um salto de quase 60 anos na história para uma noveleta que saiu na antologia In a Glass, Darkly, de Le Fanu. Pouca gente sabe, mas as histórias dessa coletânea são, supostamente, casos coletados por Dr. Hesselius, um médico investigador do sobrenatural. De todas as histórias do livro, Carmilla é de longe a mais conhecida porque todo mundo gosta de vampiros, mesmo que negue (Brinks).


Quando a noveleta é republicada, destacada do livro original, Carmilla às vezes perde a nota inicial do Dr. Hesselius, o que é uma pena porque ela explica que Laura já morreu quando o livro é publicado e permite algumas especulações interessantes.


Assim como O Vampiro, de Polidori, Carmilla não cria o tropo da vampira lésbica e/ou sedutora (Christabel está aí para a tensão homoerótica, A Noiva de Corinto tem o cara sendo seduzido pela vampira, Ruthven já era sedutor) ou de histórias de vampiros acontecendo em castelos isolados de localidades remotas (adaptações de O Vampiro acontecem em castelos de localidades remotas da Escócia), apenas condensa todos esses recursos em uma história que ficou muito mais famosa do que as anteriores, introdutórias nessas questões. Em parte porque a escrita de Carmilla é muito mais sutil e mais refinada que muitos de seus antecessores, em parte porque a história foi adaptada várias vezes para o cinema no século XX.


Como já falamos, Carmilla é fortemente inspirada por Christabel (não uma cópia, mas é claramente uma resposta ao poema inacabado e uma amarração dele) e por outras histórias de vampiros. A noveleta, entretanto, deve parte da sua fama ao livro que ela inspirou fortemente: Drácula. Bram Stoker era muito fã da história (inclusive, ele trabalhou para o Le Fanu uma época) e as pessoas costumam associar Carmilla a uma tal "Condessa Dollinger de Graz", que jaz em um túmulo na Estíria no conto O Convidado de Drácula.


A história não é exatamente uma maravilha de representatividade: Laura fica muito incomodada com as investidas de Carmilla, que chegam às raias do assédio sexual e não respeitam o "não"; e mesmo se você quiser ler a história como romântica, as duas protagonistas morrem no fim (Carmilla no fim da noveleta, Laura é dada como morta na abertura com a nota do assistente de Hesselius). A potencial homossexualidade da vampira serve mais para criar um clima de desconforto e de algo errado e monstruoso do que para criar uma narrativa de atração real e mútua. Porém, na ausência de boas representações, a história acabou inspirando muitas adaptações menos problemáticas, belamente virando a mesa contra as intenções originais do autor, em uma ocorrência que é comum a vários movimentos literários com inícios menos dignos.


Carmilla também teve suas adaptações cinematográficas desde o cinema preto e branco, a primeira sendo em 1932, e inspirou muito fortemente a representação de vampiras nele, vale a pena conferir. Nem que seja para uma vampira que canonicamente adora chocolate quente.


Onde acho para ler?

Além do nosso amigo Gutenberg, por ser uma noveleta relativamente curta, dá para achar Carmilla em algumas coletâneas de contos de vampiro. Também dá para comprar livros contendo apenas a noveleta por aí. Estou me devendo uma boa edição da história, com notas informativas e tudo o mais, como a de O Vampiro que citei acima. Se souberem de alguma, por favor avisem.



Drácula - Bram Stoker (1897)

Não acho que eu realmente precise explicar por que uma pessoa buscando as bases da ficção de vampiros deveria ler Drácula, mas o livro é grosso e tem fama de chato, então vamos lá.

Drácula é uma obra que não necessariamente criou, mas codificou e popularizou um monte de tropos de vampiros que ainda são usados como parâmetros para definir o que "vampiros de verdade" são até hoje. Isso não quer dizer que Drácula não tem originalidade nenhuma, nem criou tropo nenhum, apenas que é um livro que tem muito mais mérito por fazer bem do que por fazer primeiro.


O livro foi escrito pelo escritor e gerente de teatro irlandês Abraham (Bram) Stoker, que tinha a versão teatral tão clara que já construiu a descrição do Drácula com o ator que ele queria em mente (juro). Isso prova que "escrever pensando na adaptação audiovisual" é um fenômeno muito mais velho do que parece. Isso pode ser a razão do livro ter uma estrutura em três atos tão fortemente marcados (Harker na Transilvânia, ataque a Lucy, perseguição ao Drácula), além de outras decisões criativas que são mais fáceis de entender e aceitar quando você sabe que o autor já está pensando no script da peça.


Se você for ler Drácula esperando algo semelhante a algum dos filmes feitos inspirados no livro... você vai se decepcionar. O tom da história é muito mais reminiscente da ficção científica do que de um romance romântico ou mesmo outros livros de terror. Entre outras coisas, é uma história sobre uma criatura folclórica saída de um país rural e (palavras das pessoas da época, não minhas) supersticioso, achando que terá sucesso porque ninguém acredita nela, apenas para dar de cara com os avanços científicos do século XIX e se estrepar. O verdadeiro coração da história são os personagens humanos, não os vampiros, e a ação é lenta, valorizando a atmosfera mais que o plot. Com isso, definitivamente não vai ser o livro preferido da maioria das pessoas, mas é fascinante.


Outra coisa interessante para se focar é ver os muitos tropos dessa história que ficaram famosos (o castelo na Transilvânia, a jovem que vai virar a vítima do vampiro para introduzir os heróis à "mecânica" do vampirismo e motivá-los a ir à caça, os caçadores de vampiros implacáveis, a associação ao morcego, o assistente meio insano do vampiro, a pessoa beber o sangue do vampiro como um dos passos na transformação, etc. etc.), mas também muitos que sumiram ou se diluíram no cinema (o vampiro perde poderes de dia, só pode cruzar rios em determinadas condições, só pode se transformar nas trocas de maré, pode se tornar um pó ao luar, a mulher do grupo de caçadores é bem mais esperta que os homens, usar a ligação telepática da vítima com o vampiro para espiá-lo, etc., etc.).


Enfim, se você não lê esperando romance, é uma história cheia de atmosfera e coisas interessantes e curiosas. Fiz um resumo zoado no meu antigo blog.


Onde posso ler?

Além de ser domínio público e estar no Projeto Gutenberg, Drácula faz parte de basicamente qualquer catálogo de qualquer editora que tenha certo porte. Tem de versões ultraeconômicas de bolso a grandes versões de luxo. Se você está querendo ler para se informar, tem também várias edições anotadas.


Minha versão favorita é o The New Annotated Dracula, do Leslie Klinger. É uma versão de luxo, de capa dura e ilustrada (infelizmente, só em inglês), e com tanta, mas tanta, mas TANTA informação que tem horas que você encontra páginas só com o resto das notas de rodapé que não couberam anteriormente. É meio carinho, mas, até o momento, o mais completo que você vai achar.


Filmes clássicos de vampiros (1922 - 1970)

Nós vamos pular quase 100 anos de história entre Drácula e nosso próximo livro base e a razão disso não é que não houveram bons livros (ou livros famosos) nesse meio tempo, mas que as principais forças moldando a percepção pública dos vampiros nesse meio tempo estavam no cinema. Depois de Drácula, a obra de vampiros mais impactante e influente no público é sua adaptação de 1931, Drácula, com Bela Lugosi (que é baseado na versão em teatro do livro). O filme é tremendamente influente no cinema em geral, referências a ele estão por toda a parte e ele foi o primeiro passo a cimentar a imagem estereotípica dos vampiros que ainda existe hoje: um nobre sedutor, de capa preta e longa, sem reflexo e com um sotaque estrangeiro peculiar.


Outra adaptação homônima de Drácula (também conhecida como Horror of Dracula em inglês, ou Drácula, o vampiro da noite em português), de 1958, foi mais um filme tremendamente famoso e icônico, e cimentou outros tropos que já existiam, mas ficavam em segundo plano. Um deles foram as presas retráteis, o vampiro recuando ante a qualquer coisa que pareça uma cruz, aquela fritada esperta da pele dele no sol (inspirada, por sua vez, em Nosferatu sendo destruído pelo raiar do sol). Fora que foi o primeiro filme de vampiros (que eu saiba, me corrijam se estiver enganada) a usar a tecnologia de technicolor, e eles se aproveitaram disso usando e abusando de um sangue tão vermelho que tem hora que parece guache. A imagem de Christopher Lee como o Conde, com o interior da capa brilhantemente vermelho e com sangue escorrendo pelo lado da boca se firmou demais na iconografia dos vampiros.


São dois filmes altamente recomendáveis para qualquer um entender a evolução da figura dos vampiros durante esse tempo. Para uma adaptação icônica de Carmilla, tem o Carmilla, a vampira de Karnstein (1970), do mesmo estúdio de Horror of Dracula. Como todos os filmes da Hammer, ele é mais homoerótico e violento que a história original e, embora não seja o primeiro dessa linha, é um dos filmes que mais popularizou o tropo da "vampira lésbica".


Por fim, um clássico cult bastante referenciado hoje é o filme silencioso Nosferatu (1922), que tem uma estética toda própria. O filme é uma adaptação pirata de Drácula que, depois de seu estúdio ser processado pela viúva de Stoker, teve quase todas as cópias destruídas. Ele ficou circulando clandestinamente entre fãs até tudo cair em domínio público e ele voltar a poder ser distribuído por aí. Nosferatu não teve tanta influência no estereótipo de vampiro, mas a estética "vampiro careca, de orelhas pontudas e dedos longos terminados em garras" com certeza começa aí.


Esses quatro filmes estão longe de ser os únicos filmes de vampiro desse período, apenas os mais icônicos e básicos para seguirmos a trilha que começou lá atrás. É então que, quase 80 anos depois da publicação de Drácula, um livro vem abalar a representação dos vampiros e trazê-los de volta para o radar da cultura pop, finalmente tirando-os de debaixo da capa do Conde:




Entrevista com o Vampiro - Anne Rice (1976)

Como muitos nessa lista, Anne Rice não contribuiu para o atual cenário da ficção de vampiros necessariamente por inventar coisas, mas pela forma como amarrou suas ideias e pela riqueza de sua escrita. Entrevista não é o primeiro livro a ter um vampiro protagonista (Varney, o vampiro, um folhetim de 1845, tem cenas protagonizadas pelo Varney), nem o primeiro a ter um vampiro que não é apenas uma força maligna, sem humanidade ou compaixão (O Vampiro: um capriccio, um conto de nada menos 1833 já tem um desses), mas a saga de Louis é dramática, visceral, com momentos de questionamento filosófico e tragédia, mas também com doses generosas de reviravoltas e aventuras. O livro quase não tem personagens humanos importantes, são vampiros interagindo com outros vampiros sobre assuntos de vampiros.


Antes de mais nada, parêntese: apesar da minha recomendação ser Entrevista, por ser mais famoso, O Vampiro Lestat (o próximo da série) expande dramaticamente o universo começado com Entrevista e, para algumas pessoas, é um livro melhor (certamente, é um livro menos pesado que o drama existencial deprimente de Louis). Lestat é o vampiro mais famoso de Rice, e vale a pena conhecê-lo pelo ponto de vista dele mesmo. Tudo o que eu falar a partir daqui se aplica aos dois livros.


Voltando ao assunto, os livros das Crônicas Vampirescas trouxeram tragédia, drama e uma estética gótica muito mais forte que vampiros já tinham por si. Muitas pessoas zoaram os vampiros "de babadinho" da Rice e o fato deles serem um bando de drama queens que caem de amores pelo primeiro rabo de capa que passa (o que não é exatamente mentira), mas depois que você lê Entrevista e O Vampiro Lestat, você vai ver que a influência dela vai muito mais longe do que "vampiros, mas agora 200% mais gays".


Sobre isso, inclusive, uma coisa importante sobre as Crônicas é que elas amarram o elemento LGBTQ+ nos vampiros de uma maneira muito mais aberta e representativa do que qualquer outra história famosa anterior, como Carmilla e suas adaptações de cinema. Os vampiros riceanos são sobrenaturalmente belos e atraentes de uma maneira muito mais irresistível que em trabalhos anteriores, Louis e Lestat se apaixonam por praticamente todo mundo que passa na frente deles, independente de gênero (e, às vezes, parentesco), são dramaqueens que amam luxo, conforto e coisas bonitas e não há punição para essas coisas. O que dá errado para eles dá errado porque eles são tão ruins em tomar decisões que deveriam ter a carteira de tomador de decisão revogada pelo Universo, não por serem quem são.


Mas importante: não julgue Entrevista pelo filme de 1994. No filme, Louis é um herói trágico, um vampiro que ressente sua monstruosidade. O Louis do livro é basicamente um religioso perdendo a fé e buscando uma outra verdade transcendental para se apegar. Ele está pouco se importando em matar pessoas. Quando Lestat o força a matar um ser humano pela primeira vez, Louis fica com raiva não por ter sido feito um assassino, mas porque ele estava reservando a apreciação estética de matar uma pessoa para depois que tivesse extraído tudo o que podia da experiência de matar animais.


Os livros de Rice são filosóficos, falam muito sobre estética, natureza do bem e do mal, estão lotados de paixões intensas e obcecantes com muito, muito lore. (Sério, em O Vampiro Lestat, você conhece tudo o que queria, não queria e nem sabia que tinha sobre a História dos vampiros dela) Vale uma leitura.


Onde eu posso ler?

Sendo livros mais recentes, não é difícil encontrar em livrarias físicas ou digitais e não não tem muita diferença entre uma edição ou outra. Pegue a que for mais acessível.



Livro de regras de Vampiro: A Máscara
(1991 para a primeira edição, 1993 para a segunda)

Você deve estar se perguntando algo como "mas quê?!". Calma, não estou pedindo que aprenda a jogar RPG ou que leia cada uma das regras do jogo. É só que Vampiro: A Máscara (vou usar a sigla VtM para facilitar) está fazendo 30 anos e foi extremamente popular, entrando no top 10 de vendas de RPG no seu primeiro ano de lançamento, e sua influência literária não pode ser subestimada.


VtM é uma salada de referências onde é possível ver Drácula, Nosferatu, Anne Rice, Meninos Perdidos e mais. A razão para eu recomendar uma leitura de pelo menos um dos livros de regras originais de VtM é por causa de algo que eles têm em comum com o filme Drácula de Bram Stoker (1992), e o filme Entrevista com o Vampiro (1994): o conflito Humanidade x Besta (para usar os termos do livro).


Entendam, os problemas de Louis, Lestat e outros protagonistas de Rice não é que eles são vampiros. Na verdade, Louis e Lestat descrevem sua transformação quase como um processo transcendental, libertador. Eles não parecem nem um pouco inclinados a voltarem a ser humanos (inclusive, tem um livro INTEIRO do Lestat experimentando uma volta à vida humana e decidindo que nope, ser um vampiro é bom demais, obrigado). A razão para a série de tragédias da vida deles, como já falamos, são decisões ruins, egocentrismo e impulsividade.


Nessas três obras o vampirismo é o problema. O humano tem impulsos bons (sua Humanidade) e não quer ser um assassino, enquanto os impulsos vampíricos (a Besta) o tentam a matar e se render a seus desejos, não importam as consequências. O Drácula de Coppola é uma Besta enquanto persegue sua sede de sangue, o amor por Mina traz de volta sua Humanidade para que possa morrer em paz. O Louis do filme faz de tudo para lutar contra sua Besta, e se torna mais amargo à medida que cede a ela mais e mais. Os vampiros de VtM precisam lutar para não perder sua Humanidade (e podem, inclusive, ter como objetivo aumentar a Humanidade o suficiente para alcançar a Golconda e escapar das garras da Besta), a ponto de isso fazer parte da mecânica de jogo e ter um medidor de Humanidade na ficha do personagem e características que podem ser roladas no dado para auxiliar na manutenção desses pontos.


Esse conflito faz do vampiro necessariamente um ser trágico. Ele não vai encontrar felicidade enquanto for vampiro, porque o vampirismo é o problema. Esse tema dominou muito da literatura de vampiros posterior, por conta da popularidade dessas histórias e pelo tanto de gente que jogou VtM se tornando escritor logo depois (mesmo que suas histórias não fossem transposições literárias de campanhas anteriores).


VtM também solidificou a rivalidade entre vampiros e lobisomens que quase não existia anteriormente à década de 90 (até porque "lobisomem" é uma das palavras que os camponeses usam para se referir a Drácula no livro, já que ele pode se transformar em lobo). O RPG também firmou o conceito de um Conselho que regula as ações dos vampiros em um território, a organização em clãs e a estética ultra-urbana e punk, com roupas de couro pretas, óculos escuros e sobretudos, boates e arranha-céus que filmes como Anjos da Noite e Blade usariam algum tempo depois.


Mas caso você ainda esteja sentindo incômodo por eu estar recomendando a leitura de um livro de regras de RPG e não alguma obra mais convencionalmente literária, tem um livro hiper-mega-popular de vampiros que cristalizou vários desses elementos que citei aqui no imaginário coletivo. É nossa última leitura por ora.


Onde eu acho para ler?

Ultimamente, edições físicas de Vampiro: A Máscara são extremamente caras, mas a White Wolf vende ebooks mais ou menos em conta em seu site Drive Thru RPG. Infelizmente, só em inglês.



Crepúsculo - Stephenie Meyer (2005)

O quê? Vocês acharam que iam fugir dessa leitura? Agradeçam por eu estar recomendando só o primeiro livro da série.


Falando sério, não estou recomendando Crepúsculo pela qualidade do romance, mas pela importância da sua popularidade na produção literária sobre vampiros. Crepúsculo foi um fenômeno cultural que teve duas importâncias: introduzir certas tendências da representação de vampiros no imaginário popular e gerar uma reação contra essas tendências entre aqueles que gostariam de se distanciar de associações com o livro. Lembrem-se de que o conto que introduziu vampiros na prosa é ruinzinho, mas causou uma EXPLOSÃO de prosa sobre vampiros já no primeiro ano de publicação.



O que Crepúsculo coloca na mesa, então, em termos estritamente de representação de vampiros? Em primeiro lugar, dois dos principais elementos que falamos na entrada sobre Vampiro: a Máscara: os vampiros são trágicos por serem vampiros e têm que lutar contra os impulsos da Besta e rivalidade com lobisomens, que são duas características icônicas do livro. Em menor escala, Crepúsculo também populariza o conselho superior a todos os vampiros e a organização em "clãs" (embora os "clãs" de Meyer sejam bem diferentes dos de VtM).


Para além dessas influências, um elemento da Saga Crepúsculo que é extremamente Anne Rice-esco é como os vampiros são sobrenaturalmente bonitos e irresistíveis e têm várias características que os aproxima de estátuas. Os vampiros riceanos, além de quase brilharem ao luar de tão peculiar é a textura de sua pele, vão ficando mais parecidos com estátuas à medida que envelhecem, com membros cada vez mais rígidos e pesados. Coincidência? Provavelmente, mas bem interessante.


Fora isso, o livro trouxe outros elementos de volta para o mainstream. Entre eles, a transformação através de uma única mordida (embora popular no cinema, nos livros até aqui alguns outros passos eram tipicamente necessários), a ideia de que o sol não é um problema, e a falta de presas. Sim, como eu comentei láááá em cima, presas retráteis são uma invenção relativamente recente do cinema. Vampiros geralmente ou já tinham os dentes avantajados naturalmente (o que não é nada discreto e causa de suspeita das pessoas ao redor) ou tinham dentes normais e deixavam uma marca de mordida comum.


Agora, teve algumas outras coisas que Crepúsculo popularizou (mesmo não tendo necessariamente inventado) que acho legal pontuar por serem mais incomuns: primeiro, essa foi, talvez, a primeira obra imensamente popular que quebrou completamente com a estética gótica-byroniana dos vampiros. Os vampiros da Meyer não se vestem de preto, não moram em um castelo ou mansão obscura, têm muito pouca relação com símbolos tradicionais de morte (como dormir no caixão) ou animais noturnos. Aliás, isso foi uma das primeiras coisas que eu acho que alienou tanto os fãs de vampiro da franquia: os vampiros de Crepúsculo explicitamente vivem em Forks para poderem andar de dia. Eles não só têm muito pouca estética gótica envolvida, eles quase não são noturnos.


Isso é uma faca de dois gumes. Por um lado, tem a alienação de fãs que já comentei (sendo que fãs de histórias de vampiros frequentemente toleram histórias tão ruins quanto ou piores que Crepúsculo, desde que tenham a estética certa), mas, por outro, abre todo um campo para escritores retratarem vampiros em suas histórias em cenários mais cotidianos, menos dramáticos ou abertamente góticos, aumentando a variedade de representações.

Não me entendam mal, não quero dizer que essa quebra da estética gótica foi invenção da Stephenie Meyer, apenas que ela popularizou essa possibilidade.


A outra coisa popularizada por Crepúsculo que eu gosto, mesmo sabendo do tanto de ódio que gerou foi que você pode, sim, quebrar com a maior parte dos tropos de vampiros relativos a poderes, fraquezas e anatomia e, ainda assim, ser popular. Você pode não gostar que Meyer justificou que os vampiros não saem no sol porque brilham, mas não só isso é criativo, como surpreendentemente coerente com a forma como ela caracteriza os vampiros. Ao longo de toda a saga Crepúsculo, vampiros são seres quase minerais em sua composição e minerais... Brilham ao sol.


A forma como Meyer sacudiu esses tropos e fez algo próprio gerou uma onda de, por um lado, escritores que fizeram um retorno às origens de características de vampiros que já estavam quase esquecidas e, por outro, de escritores que não tiveram medo de inventar bastante nas suas caracterizações, sabendo que nada que fizessem seria tão odiado quanto brilhar no sol.


Por essas e por outras, vale essa lida nessa história de adolescentes adolescentando. Muita coisa posterior começa a fazer sentido, seja por influência ou por reação contra a saga, especialmente nos livros YA de vampiros publicados depois de 2005.



E, com isso, fechamos nossa viagem pelos livros mais importantes da literatura com vampiros dos últimos trezentos anos. Para recordar, a lista de leitura recomendada foi:


  • Dissertations sur les apparitions des anges, des démons & des esprits et sur les revenans et vampires de Hongrie, de Boheme, de Moravie & de Silesie -- Dom Agostinho Calmet (1746)

  • Poemas de vampiros (1748 a 1819)

  • O Vampiro - John Polidori (1819)

  • Carmilla - Sheridan le Fanu (1872)

  • Drácula - Bram Stoker (1897)

  • Filmes de 1922 a 1970 - Nosferatu (1922), Drácula (1933), Drácula (1956) e Carmilla, a Vampira de Karnstein (1970)

  • Entrevista com o Vampiro - Anne Rice (1976)

  • Livro de regras de Vampiro: a Máscara (1ª ou 2ª edição) (1991 ou 1993)

  • Crepúsculo - Stephenie Meyer (2005)

A ideia dessas recomendações, como expliquei, era dar uma boa ideia das obras influenciando a percepção popular de vampiros a alguém que quisesse ter essa noção. Mas talvez você esteja buscando o oposto: quão diferentes os livros de vampiro podem ser entre si? O que temos em termos de vampiros que fogem ao estereótipo? O que já foi feito para subverter essas percepções? Spoilers: muita coisa, desde muito cedo.


Mas isso é conversa para outro dia...



Artigo por Adriana Rodrigues
Edição e revisão por Elisa Fonseca

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