Por Adson Leonardo
Introdução
A narrativa em três atos já é uma velha conhecida para nós, do ocidente. Seja nos livros, filmes, séries ou qualquer outra mídia. Esse padrão de se contar histórias permeia toda nossa ficção.
Sua estrutura é simples, primeiro introduzimos o mundo e personagens no primeiro ato, estabelecendo um conflito ao fim dele. Depois as coisas se complicam e os protagonistas enfrentam o conflito, levando à um clímax. No último tudo se resolve, gerando crescimento dos personagens.
Sem dúvidas funciona. É um terreno comum que já caminhamos muitas vezes, ele se adequa ao padrão de pensamento e percepção que foi construído ao longo de toda nossa vida, como indivíduos e sociedade.
Porém, como em qualquer forma de arte, existem outros modelos para se estruturar uma obra. O kishotenketsu é a narrativa clássica do oriente e nos apresenta uma estrutura em quatro atos, ao invés de três, mas que se difere da tradição do ocidente em muitos outros aspectos.
Desenvolvimento
Originado na poesia chinesa, o kishotenketsu logo se espalhou e deu forma à narrativa japonesa, coreana e de outras regiões. Seus significados - Ki: início ou introdução, Sho: desenvolvimento, Ten: virada ou complicação e Ketsu: conclusão - nos dá a forma básica de como orientais contam suas histórias.
Talvez a expressão mais simples desse formato sejam as tiras japonesas em quatro quadros. Famosos no seu país, esses quadrinhos destilam para a gente o mais básico da estrutura do kishotenketsu.
O primeiro quadro (ou ato) nos mostra um cenário, o segundo o desenvolve, detalhando o mundo e/ou personagens e perspectivas. No terceiro está o clímax, executado através de uma revelação ou novo ponto de vista sendo apresentado às vezes sem relação direta com os dois primeiros. No quarto é onde tudo se conecta, resinificando os dois primeiros quadros através do mostrado do terceiro e amarrando pontas soltas.
Claro que esse formato se espalha para os mangás, animações, filmes e até videojogos. Em quase toda mídia oriental é possível encontrar o kishotenketsu.
Observe que durante a descrição das duas estruturas narrativas, algumas diferenças são visíveis. Conflito, enfrentamento e crescimento são considerados pontos chave para uma história quando utilizamos o modelo ocidental. Em momento algum estão presentes ou são necessários na oriental.
Complicação
A grande diferença entre os dois modelos é que um assume o conflito como parte essencial de uma narrativa, e que o mundo e personagens será alterado pelo enfrentamento deste. O outro, por sua vez, não tem necessidade de conflito, logo também não tem de um enfrentamento e não se assume que os personagens sairão melhorados ou mais fortes de alguma forma.
O kishotenketsu escala sua história e produz o clímax utilizando de exposição e contraste. Ao apresentar uma nova perspectiva no terceiro ato. A narrativa gera interesse através da curiosidade ou quebra de expectativa e a conclusão se dá pela simples justaposição de informações.
Ao dizer que os dois primeiros atos serão ressignificados quero dizer que, quando colocados de encontro com o próximo, as informações neles introduzidas e desenvolvidas tomarão uma nova forma frente às revelações dadas no terceiro. Por isso uma “complicação”. O que tomamos por certo no início será revirado, gerando humor, suspense e ação.
Tal ausência de conflito, não por omissão mas por desnecessidade, muitas vezes leva a narrativa a parecer entediante ou “sem sal”. Então deixe-me colocar mais água na sopa e falar sobre outro ponto não essencial no kishotenketsu: crescimento.
Qualquer um que já assistiu a animações japonesas, ou suspense e terror oriental, poderá compreender. Geralmente lentas, as narrativas passam a maior parte do tempo desenvolvendo os personagens, suas rotinas e o mundo, para depois revirar tudo de cabeça para baixo de alguma forma. E então, muitas vezes após esses eventos, os resultados são apenas uma readaptação de rotina. Os personagens continuam com suas vidas. Mudadas, é claro, e o mundo talvez não seja mais os mesmo, mas amanhã é apenas outro dia e eles continuam a viver. Há mudança. Não o crescimento como visualizado na narrativa heroica ocidental clássica, mas sim o enfrentamento de uma nova realidade.
Conclusão
Talvez o exposto até aqui tenha lhe deixado com a pulga atrás da orelha, seja por estranhamento ou reconhecimento. E essa é a função do kishotenketsu. Sua narrativa centrada em exposição gera no consumidor a sensação de descoberta. Ao montar o todo em sua mente, utilizando das peças dadas e preenchendo as lacunas com sua própria imaginação, ele se sente parte da história, como um personagem naquele mundo que o descobriu e redescobriu.
Tudo isso fica visível quando tratamos de terror e por isso o horror oriental é tão marcante e forte para nós. A ausência de ação direta e enfrentamento deixa os personagens extremamente vulneráveis às revelações e suspense criado pelo terceiro ato aparentemente desconexo e estranho. E, quando chocados os três primeiros, toda a obra se desenrola na nossa frente, em uma virada surpreendente e talvez desconfortante. Essa estrutura é incrivelmente poderosa para se criar suspense e tensão, e tem sido utilizada pelo cinema oriental com sucesso por várias décadas.
Nos videojogos e mangás japoneses também é bastante óbvia a estrutura. A Nintendo passou a utilizar o kishotenketsu ao desenhar os níveis para seus jogos do Super Mario. Através do game design eles: introduzem uma mecânica, geralmente num ambiente seguro onde o jogador não vai perder, permitindo a exploração e aprendizado; a desenvolvem, mostrando novas formas da mecânica ser utilizada; a complicam, expondo o jogador a situações cada vez mais desafiadoras e perigosas e ao final colocam um último teste para tudo o que foi aprendido até então.
Já nos mangás basta observar os formatos das histórias mais famosas. A exposição e novas revelações geralmente são os pontos chave das narrativas, dando nova perspectiva à jornada do protagonista, ao mundo e pessoas ao seu redor. As obras shounen, geralmente focadas na ação e aventura, são cheias de conflito, e em momento algum o kishotenketsu os descarta, porém utilizam constantemente em seus arcos de história da complicação do terceiro ato, revelando ao protagonista que tudo é maior ou diferente de como pensava.
Tente observar da próxima vez que consumir uma obra em qual estrutura ela se encaixa. Como a tensão e clímax são criados, quais problemas existem e como os personagens lidam com ele, se é que lidam.
Como toda técnica ou estrutura, o kishotenketsu é apenas uma de muitas. Qual usar sempre depende de uma séries de fatores e o tipo de história que se quer contar. As ferramentas existem e servem a propósitos diversos, e tê-las em cinto de utilidades, prontas para uso, te ajudará a evoluir como artista e alcançar as pessoas das mais variadas formas.
[O texto ficou grande]
Foi um bom artigo explicando sobre o kishotenketsu. Porém eu tenho algumas divergências e complementações quanto ao que foi apresentado aqui.
Primeiro a complementação: A forma de como funciona o kishotenketsu apresentada no artigo realmente está correta, porém, essa não é a ÚNICA forma de se aplicar o kishotenketsu, visto que existe várias aplicações e níveis de kishotenketsu, essa apresentada é apenas uma delas. Claro que eu não vou dissecar isso aqui, porque o comentário ficaria ainda mais extenso, mas vou abordar isso superficialmente.
Quando é citado que o terceiro ato (ten), resignifica os dois primeiros dando-lhes uma nova forma, está correto, mas não é a única função dele, pois essa parte da estrutura é bem…
Talvez seja por isso que os jogos de RPG japoneses têm um primeira metade bastante "arrastada" ao apresentar os personagens e o mundo, para, então, no meio da história, vir um ponto de virada que muda a narrativa por inteira. Se o jogador até então pensava que a narrativa era sobre X, ele vai ver que era sobre Y.