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Não esqueça, de Carol Façanha

Atualizado: 29 de out. de 2021


"Nada consegue apagar da minha mente aquela mulher sendo arrastada no corredor aos gritos. Algo se rompeu ali. O balão de alegria por ter feito a prova foi substituído por um nó na boca do estômago e eu não acho que o resultado do exame vai levar o mal estar embora. Sinto que há mais segredos aqui que o ambiente branco e cirúrgico deixa entrever."


Não esqueça, a obra vencedora do prêmio Le Blanc 2021 (UFRJ/UVA), como melhor romance, carrega o poder de seu título. É difícil esquecer o impacto desse livro depois de lê-lo. A editora Caligari, lançou o livro em junho deste ano, com a capa do artista Gabriel Flávio. Na obra, Carol Façanha questiona a patologia do apego e o que é ser humano através de um embate ideológico entre o lembrar e o esquecer.


A obra, estruturada em quatro atos, possui cento e noventa páginas, além de um prólogo, escrito pelo Professor Alexander Meireles e um prefácio, escrito por Marcelo Alves. Cada ato é constituído por alguns capítulos, introduzidos pelo nome de um dos personagens e de uma palavra chave.


Essa distopia acontece em São Paulo, no ano de 2121. O Instituto Corpus realiza cirurgias de esquecimento parcial ou de apagamento total. Através do suporte do governo, a supressão de emoções se torna uma forma, quase obrigatória, de lidar com luto e outras questões humanas. Entretanto, a força política contrária, Aletheia, luta pela liberdade de não esquecer.


Uma jovem sem memória tenta descobrir seu passado. Essa foi a primeira frase escrita pela autora e pensada para a protagonista Pandora, que amarra sua história em outros personagens que tomam o palco para si, em vários momentos do livro. Trompus, Nero, Paula, Sebastião, Corina. Os personagens marcam através da narração em primeira pessoa as suas personalidades, de forma muito clara. Reflexões profundas desses personagens conectam a história em uma série de intrigas que levam o leitor a um caminho lógico e fluido.


Retornando ao fio principal, temos Pandora, que teve o apagamento total de sua mente, mas em um evento na Corpus, a jovem questiona seu passado. Nisso, ela se junta à resistência, pelo direcionamento de Nero. Apesar de estar presente na Aletheia, Pandora parece indecisa sobre qual lado seguir, ao mesmo tempo em que procura uma identidade perdida.


Um embate devastador entre os rebeldes da Aletheia e a Instituição Corpus geram consequências inesperadas. Só lendo para saber qual o destino de nossa jovem misteriosa.


Em um terreno fértil de possibilidades, sem régua moral pré-definidas, expectativas são quebradas o tempo todo. O livro corre em um fluxo leve e intenso. A autora varia o estilo de escrita algumas vezes. O que não modifica a linha central da história, consequentemente não prejudicando a leitura. Ao contrário, as cartas e divagações presentes na prosa só a enriquecem. Lê-lo foi uma experiência de autoconhecimento por si só, já que as reflexões me atingiram de forma certeira. A escrita é belíssima.


Um adendo importante para essa resenha é citar que a autora teve um cuidado fantástico trazendo uma atmosfera imersiva, através da trilha sonora, criada para a obra e dos cuidados e mimos com os leitores que a acompanharam.


Conheça a autora


Carol Façanha é escritora, pesquisadora da monstruosidade feminina na distopia contemporânea e doutoranda em literatura de língua inglesa na UERJ. Foi colunista da Galileu e atualmente escreve para o Mídia Ninja, Publicou artigos, novelas, e seu primeiro romance "Não esqueça" foi o vencedor do prêmio Le Blanc, em 2021.


Carol, você tem uma extensa e fantástica formação acadêmica. Pode discorrer um pouco sobre a importância da formação na sua literatura?


A faculdade de Letras não me ensinou, exatamente, a escrever. Isso é algo que muita gente, e eu, também, pensava. Mas ajudou a situar o que me interessava escrever e o que eu sentia que "faltava" no mundo.


Ouvimos bastante que todas as histórias já foram escritas e que originalidade não existe e vou te dizer que estudar literatura fez com que eu pensasse duas vezes se queria escrever, porque quanto mais se estuda, mais entendemos que não há tempo para estudar tudo, então, você é obrigada a qualificar suas leituras e suas escritas também. De repente, me vi perguntando coisas que antes não me importava tanto como a relação da política com os mundos que eu criava. Não é algo tão consciente assim, mas é algo que realmente se infiltrou no meu processo criativo. Isso, às vezes, me paralisa porque estou preocupada com o que certos símbolos representam, o que romantizar alguma coisa diz sobre minha atuação como escritora.


Outra coisa é que não posso ignorar que a maior parte da minha formação (em universidades públicas ou financiada por agências de fomento) foi financiada pela própria sociedade, então, por mais careta que isso possa soar, quero devolver algo para esta mesma sociedade, colocando em xeque algumas certezas que precisam ser mudadas. Se pelo meio da arte, que é um meio que escolhi, ótimo. Eu não acredito numa arte divorciada da política, toda arte é política (ou por opção ou por inconsciência) .


Quais os principais gêneros que você trabalha? Você escolheu eles por algum motivo?


Sempre gostei de ficção científica e alta fantasia, mas a primeira peça que escrevi foi gótica. E eu não sabia que era gótica, pois não lia o gênero, mas tinha todos os elementos da narrativa gótica: castelos sombrios, maldições e enigmas, delírios oníricos, criaturas monstruosas. Intuitivamente eu escrevia sobre o que eu sonhava. Foi assim com a novela "Debaixo das Escamas" e o "Filha da Lama". O segundo já era alta fantasia, uma fantasia mais sombria, foi a primeira coisa que publiquei na vida, pela Amazon.


A distopia veio depois, eu peguei toda aquela fase de "Jogos Vorazes", "Divergente", "Feios", Dezesseis. Isso na minha adolescência, porque antes, na infância, eu era realmente muito fã de Harry Potter, do tipo que fazia feiticionário em cadernos e fingia que tinha aula de Poções. Agora pensando, sempre gostei de escrever sobre coisas que não existem, mas que acabavam espelhando certos movimentos do nosso tempo. Eu acho que a ficção especulativa nos dá a possibilidade de pensar assuntos delicados numa distância que aproxima pessoas de um modo que o debate direto (sem a imaginação para mediar) muitas vezes não consegue.


Conta um pouco sobre sua pesquisa "a monstruosidade feminina na distopia contemporânea".


É, isso começou fora da academia, quando escrevi a noveleta "A Sobrevida dos Pássaros". Foi como se incendiasse algo em mim e eu precisava mergulhar na questão do feminino na nossa atualidade. Como na época eu ainda cursava o mestrado, esperei o doutorado para, então, mergulhar no feminino. Demorei algum tempo para encontrar minha "área de pesquisa". Que eu queria trabalhar o feminino, isso estava claro para mim e para os professores que leram meu projeto de entrada, só que, eu tinha que ser mais clara. Então, acabei amarrando a minha "origem" na literatura, o gótico, com este interesse que só agora me dava conta, o feminino. Daí, comecei a estudar a figura do feminino no gótico contemporâneo.


Atualmente lido com dois romances na tese de doutorado e tento analisar a "monstruosidade feminina" nas personagens deste material. Em outras palavras, analiso de que formas essas figuras escapam do que é esperado e assumem com isso uma "face monstruosa". E é preciso dizer que estudar sobre monstros ou mesmo sobre a própria "monstruosidade feminina" não é algo exclusivo meu, há muita gente, dentro e fora do Brasil, investigando a mesma temática.


Se procurarem no Google Acadêmico vão achar uma porção de trabalhos sobre "o monstro" (o texto Monster Culture do Jerome Cohen é um bom local para começar) ou a "female monstrosity". Há, também, trabalhos sobre pontos em comum entre o gótico e a distopia, como a tese de 2005 "The Future is Gothic", feita por Amy Cartwright na Universidade de Glasgow. Agora, por que tanto falamos de monstros? Bem, tudo começa quando entendemos que o monstro é resultado de uma projeção nossa, de uma forma por vezes muita estreita de ver o mundo. O monstro nos lembra de tudo que escondemos para debaixo do tapete. E, nesse sentido, além de muitos outros, o monstro divide este local de lembrete com as mulheres e outras subjetividades silenciadas.


Quais foram as principais inspirações e referências para o "Não esqueça"?


Há um jogo de videogame francês chamado "Remember Me". É curioso, porque eu não sou gamer e foi por acaso que assisti ao trailer de uma Paris do futuro em que uma espécie de Facebook começa a comercializar memórias e acaba controlando a mente das pessoas. Gostei tanto da premissa que assisti ao jogo todo (mas não joguei) para entender a história. Fiquei um pouco desapontada com a trama por não ter ido na direção que eu gostaria. Por um tempo, fiquei pensando na premissa sem muita coragem de fazer algo a respeito, porque achei que qualquer coisa que escrevesse seria uma cópia dessa ideia.


Quando surgiu o Nanowrimo de novembro de 2016 resolvi experimentar escrever, porque neste ponto estava lidando com vários diálogos internos com os meus personagens e já tinha entendido que, por mais que "Remember Me" tivesse sido um pontapé inicial, o "Não Esqueça" seria diferente. Além disso, me dei conta que havia inúmeras histórias em plataformas de todo tipo (filme, livro, videogame) sobre perda da memória ou controle de sociedade a partir de amnésia e que se isso fosse me parar, então, era melhor me aposentar antes de começar a escrever.


Nunca perguntei para ninguém que leu o "Não Esqueça" se viu semelhança com "Remember Me" e agora fiquei com vontade de fazê-lo. Mais para o final do processo, outra inspiração chegou até mim, a animação "Ghost in the Shell". Adorei ver como ali havia momentos de suspensão dos conflitos diretos da história para abraçar uma reflexão filosófica. Eu já vinha fazendo isso com o meu romance e sentia que poderia estar me afastando demais do gênero ou querendo exigir do leitor um mergulho que ele não estava interessado em fazer. O engraçado foi que "Ghost in the Shell" me tranquilizou com a semelhança na mesma medida que o trailer de "Remember Me" fez com que eu me preocupasse demais com originalidade. Hoje tenho uma relação diferente com inspiração.


Como foi a recepção do público para o "Não esqueça"?


Melhor do que eu esperava. Tenho várias histórias engavetadas que não tinha coragem de colocar para fora, e se não fosse o apoio dos amigos e da editora que acolheu o romance, teria encontrado uma forma de me sabotar. Mas, falando do "Não Esqueça", tivemos já três grupos de leitura coletiva e as pessoas foram generosas. Houveram vezes em que um leitor, em geral escritor, também, me liga para debater os caminhos do livro e acabo aprendendo muito.


O Rodolfo Stancki, pesquisador da Ficção Científica, foi mediador do Grupo de Leitura da UFMG e fez comentários que vou levar comigo para onde for, porque vi que é possível, sim, equilibrar debate filosófico com literatura de gênero para jovens adultos. E é surpreendente a resposta: um leitor comparou o livro a uma dinâmica de ópera ou com diálogos parecidos com as peças de Shakespeare pela natureza das vozes inflamadas dos personagens. Recebi e-mail de um professor do doutorado em um equilíbrio saudável de estímulo e dicas para seguir melhorando minha escrita. É um processo intelectual, porque mexe com planejamento, com o modo como escolho narrar acontecimentos, mas é um processo bem mais emocional. Narro em primeira pessoa e estive na cabeça destes personagens (ou eles estiveram na minha). Eles têm uma vida dentro de mim, uma vida contínua, mas eles, agora também têm uma vida fora e é bonito como isso é incontrolável. Tem gente que adora a Corina, outros preferem o Trompus. A maioria torce o nariz para o Nero. Ninguém se incomoda tanto com a Pandora como eu, o que é uma boa coisa, já que ela é a protagonista e tem dias que não a suporto. Eu fico muito feliz de ter conseguido publicar no meu país de origem e de ter começado aqui.


Carol, sobre a sua base de leitores, recentemente, vi você falar sobre a necessidade de uma comunidade de autores. Pode nos falar um pouco sobre como você lida com essas questões?


Recentemente criei um grupo de escritoras de Literatura Fantástica para lermos "Mulheres que Correm com Lobos" e debatermos o texto uma das outra. Isso veio através do Instagram, pois não conhecia nenhuma delas fora da rede social.


Outras formas que tenho hoje como promover este espaço é com o grupo de Telegram e o grupo de Whatsapp, dividindo com escritores o meu processo de criação. Ainda quero fazer mais, divulgar mais da minha pesquisa, mas confesso que ainda não encontrei um modo fazer isso. Reduzir a pesquisa em um post ou em stories talvez seja algo para qual eu não tenha suficiente capacidade de síntese ainda. Ainda sobre o Instagram, estou encontrando o meu ritmo de estar a par com o que a rede proporciona sem me perder no mudo virtual. Ao mesmo tempo em que nos aproxima de outros escritores, pode ser destrutivo para nós, enquanto artistas, que vivemos as vinte e quatro horas dos nossos bastidores enquanto assistimos ao palco de todo mundo. É uma espécie de espelho torto. Acho que uma forma de contornar isso é: tornar essa partilha de processos criativos o mais humanizada possível.


Quais as suas expectativas para esse ano?


Eu passei o início do ano totalmente envolvida na divulgação do "Não Esqueça" e no doutorado. Até o meio de maio finalizo a primeira versão de "Sinas de Fogo", uma alta fantasia que pode ser lida de quatro formas diferentes, a ser lançada ainda este ano. Está também prevista uma antologia, que ajudei a organizar e escrever: é uma fantasia distópica diferente de tudo que já vi (cuja ideia original nasceu da mente de um autor que admiro demais, o Daniel Mamede).


Além disso, estou participando da sala de escritores WolfPack do André Vianco, onde participo escrevendo uma trilogia distópica. A ação mais estimulante por ora é que vou apostar em algo um pouco mais ambicioso neste ano: assumir minha alma novelista e colocar várias das histórias que estive prendendo na gaveta para fora. Em vez dos romances de duzentas, trezentas páginas, vão vir alguns projetos de cento e cinquenta, cento e setenta páginas, alguns com experimentações que ainda me dão medo, mas que vou arriscar assim mesmo. Estou animada. Por mais paradoxal que pareça, estudar e escrever distopia me ensinou a ter fé.



Entrevista por Filipo Brazilliano

Resenha, edição e revisão por Elisa Fonseca

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