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Nós somos feitos de lembranças, por Nathália Abreu

Atualizado: 20 de nov. de 2021


Colagem digital por Filipo Brazilliano

É a segunda vez que veria aquele homem.


Meu corpo estava pesado feito chumbo diante da porta de entrada. Dona Helena, minha mãe, disse que deveríamos visitar meu avô depois da confirmação de sua doença, Alzheimer. Após a morte de minha avó Lila o pouco contato que tive desapareceu por completo. Enrico, meu avô, era um desconhecido para mim, apesar de ser um escritor famoso.


Seu sorriso amarelo e olhos azuis tão vívidos inspecionou cada detalhe de meu rosto, e há algo que ele procurava além da careta que exibi.


Seja simpático, foi o que o olhar de minha mãe disse no momento em que o cumprimentei com um aceno. O que iria falar? Olá, vovô Enrico. Sou seu neto, Henrique.


Será que a doença tocou suas lembranças sobre eu ser o único neto com nome em sua homenagem?


O homem pigarreou no sofá. Seu corpo era magro e comprido, parecia cadavérico no relance da luz em que se moveu. Estávamos a sós e nenhuma palavra fora dita enquanto nos encarávamos sem trégua. Quem era aquele homem?

Enrico levantou, subiu as escadas e segui seus passos, do modo que uma mariposa segue a luz. Queria saber quem era o meu avô. Parei na porta do quarto, ao final do corredor e o vi sentar de frente a um espelho. Seu rosto comprido, angular e o queixo forte marcaram a expressão fria e reservada na pele macilenta. Mesmo que aquilo fizesse um contraste em seu rosto, eram olhos azuis tão vívidos, de uma vida na qual não participei, faziam com que eu não desviasse o olhar.


O quarto estava revirado, assim como meu estômago, inúmeras cartas jogadas no chão, fotos rasgadas e uma máquina de escrever enferrujada em um canto, banhada por uma pequena fresta de luz solar. Entrei no quarto e peguei o primeiro papel no chão; as letras cursivas saltaram por meus olhos fazendo com que meu coração pulasse uma batida.


— Leia para mim — a voz grossa e atemporal, que há muito não aparentava ser usada, me sobressaltou. Voltei a olha-lo, vi que agora firmava seus olhos na máquina de escrever enferrujada.


Permiti que meus olhos passeassem na carta antes de começar a lê-la em voz alta.


— Rico, ainda se lembra de nós? — li em voz alta e ouvi o suspiro daquele homem, intocado no canto do quarto. Meus pés se aproximaram tentando encontrar a intimidade que faltava entre mim e ele.


Era familiar passar os olhos por aquelas palavras, mergulhei em um universo que parecia ser tão meu quanto dele. Amélie era seu nome e Barcelona da década de 40 apresentava-se tão distante quanto minha relação com Enrico. Quem era aquela mulher? Minha avó a conheceu?


Cada frase lida, meu corpo acompanhava com um ritmo que não me pertencia. Não podia pertencer.


Minhas mãos estavam suadas, segurando o papel. O nome daquela mulher, repetidas vezes, ecoava como uma escritura em meu corpo. A cada passagem minha mente se inundava de imagens: o corpo albino de Amélie sobre o meu e o contato de nossas peles, breve como um suspiro. Inspirei o ar rápido e fechei os olhos, com a sensação queimante que invadia as veias e terminava no baixo ventre.


Cada toque daquelas palavras agitava algo grande em meu corpo, cada letra deixava-me em um torpor inofensivo e dramático.


— Henrique? — a voz de Dona Helena no primeiro andar fez com que eu tirasse os olhos da página. Dona Helena, minha mãe, e a fugaz memória de que ela lembrava alguém sobre as letras daquela carta.


Meu avô continuava na mesma posição e inspirei profundamente tentando desanuviar a sensação doída que percorria por meu corpo aceso.


— Quem é Amélie? — perguntei, a voz falhando e recebi de Enrico apenas um olhar consternado.


Bati os pés pelos tacos ocos de madeira, indo até aquele homem. A carta em minhas mãos foi sacudida em seu rosto, na raiva que inflamou minhas veias. Parei, puxando todo o ar dos pulmões.


Meus olhos azuis estavam refletidos no mesmo espelho, a pele cheia de rugas marcava os traços em meu rosto, como os caminhos que percorri daquela cidade. A cólera, que havia incendiado meu corpo com as palavras da carta, aos poucos morria refletida no corpo curvado diante do espelho. A carta em minha mão era um objeto outrora esquecido, mas as suas últimas palavras ecoavam em meus olhos:


Nós somos feitos de lembranças.


Conheça a autora


Nathália Abreu é escritora de fantasia, apaixonada por cartografia e designer de moda. O Conto "Nós somos feitos de lembranças" recebeu menção honrosa em 2020 pelo concurso Pintura das Palavras organizado pela Vanessa Passos (@⁣pinturadaspalavras)

Nathália Abreu (itsnahabreu)

Você se lembra de quais foram suas primeiras leituras?


Meu primeiro contato com a literatura foi com Harry Potter. Porém só aos dezessete anos que me tornei uma leitora assídua, com a saga Crepúsculo. Gostava bastante de ler revistinhas de signos quando criança. Minha família não tinha o costume da leitura, então demorei algum tempo para adquirir o hábito de ler livros.


Em quais gêneros você se sente mais confortável para escrever? E, por que?


Fantasia e realismo mágico. Tentei escrever romances, mas sempre sentia que faltava algo, um tempero na escrita.


Cresci rodeada de magia. Sempre gostei de assistir filmes de fantasia. Quando criança, amava os filmes da Disney e também filmes como Indiana Jones. Queria trazer essa jornada mágica aos meus livros.


Existem temáticas que marcam suas obras? Algo que o leitor sempre encontrará?


Família, lealdade, amizade. É uma base que descobri há pouco tempo. Gosto de explorar todas as formas de amor também, seja ele romântico ou não. Meus livros e contos sempre levam a alguma treta familiar. Em amizades gosto sempre de afirmar a lealdade. Armas mágicas e culturas diferentes, também são recorrentes. Quero que o leitor sinta que faz parte daquele universo, e não seja apenas um cenário de fundo para composição de uma história.


Pode nos falar um pouco sobre as suas influências?


Zafón. Foi pelo amor à escrita que vi nas páginas de seus livros que comecei a escrever. Eu tenho uma história bonita com o autor, algo que girou ao redor da Sombra do Vento. Já de autores de fantasia, gosto muito de Cinda Williams, pois ela passou por um processo de virar a página para escrever as histórias que amava. Tolkien e seu universo me encantam, desde que vi pela primeira vez os filmes. Esses autores influenciaram a minha maneira de criar e de registrar o mundo em palavras.


Você é envolvida com outras artes? Se a resposta for positiva, fale um pouco sobre o diálogo entre essas artes e a literatura?


Sou designer de moda, gosto muito de estudar a história da moda a partir da expressão de outros povos antigos. Também simpatizo com a antropologia, resumindo: tudo que tenha referência cultural. Gosto de trazer esse olhar cultural em minhas histórias. Também sou aprendiz de costura, artesanato e desenho.


Todas essas artes são aplicadas em meu worldbuilding. Quis criar algo especial nas minhas narrativas. Entrei em moda para criar os figurinos dos personagens e muito do que estudei em história da moda foi usado para criar as culturas de meu universo.


Edição e revisão por Elisa Fonseca

Colagem e entrevista por Filipo Brazilliano


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