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O espectador silencioso, por Ivanka Cerqueira

Atualizado: 13 de mai. de 2021


Ilustração por @ellys_swot e @paint_reflexivo


Um espectador silencioso se recostou contra a balaustrada do prédio em uma das avenidas principais de uma cidade qualquer. A noite estava fria e por isso, talvez a rua estivesse tão vazia. As pessoas temiam o frio assim como a ela.


Anjo Negro, Ceifador, Vingança. A Morte tinha muitos nomes, mas nem sempre atendia a todos e considerava alguns até um pouco inadequados. Se pudesse escolher, Destino é como se chamaria ou Justiça, ela considerou. A vida é desleal, separando os povos e pessoas. Julgando muitos e abençoando a poucos. Bem, aqui estava ela para oferecer justiça a todos. Um bilhete fechado onde todos eram ganhadores, cedo ou tarde.


Cansada, a Morte se sentou nos degraus frios que levavam para o gigante edifício atrás de si, cedendo a tentação de adiar um pouco suas próximas visitas. Um pequeno vira-lata veio sentar-se junto a ela, seu pêlo castanho sujo e desgrenhado saindo em tufos. Ela deixou que seus dedos longos corressem preguiçosamente pela cabeça dele.


Logo um casal entrou no campo de visão dela, desviando sua atenção do cachorro que se deitara mais confortavelmente aos seus pés. O sorriso afetado que a moça dirigiu ao rapaz com quem ia de mãos dadas fez com que Morte estreitasse os olhos. Ela já testemunhara esse olhar incontáveis vezes, e suspeitava sempre o veria de novo e de novo. A ingenuidade presente no sorriso da garota apaixonada não duraria muito a julgar pela forma displicente como o rapaz retribuía seus cuidados. Isso e as mensagens que ela encontraria se olhasse no celular que ele levava no bolso da calça, pensou a Morte balançando a cabeça em reprovação. As pessoas não aprendem mesmo.


Ainda alisando o cão, a Morte permitiu que seus olhos vagassem sem realmente se fixar em ninguém por alguns momentos, somente observando os adolescentes passarem em bando, vestidos todos iguais em uma luta muda para se encaixar, alguns casais de mãos dadas e alguns jovens desesperados pela atenção do sexo oposto.

E então ele dobrou a esquina.


A postura altiva desafiando qualquer um a entrar em seu caminho fez com que seus olhos se enfocassem nele instantaneamente, a pele morena cobria um corpo de constituição forte. As mãos grandes estavam cobertas de calos e ela sabia de algum modo que passando bem diante dela estava um vencedor, alguém que abriu seu caminho no mundo, cavando, mordendo, arranhando e até matando quando fora necessário. Sim, ela se lembrava desses olhos.


A Morte sabia que a visão que ele tivera dela ainda o assustava a noite fazendo-o se encolher como um garotinho amedrontado. O horror do que ele fizera estava colado em sua alma de um modo mais presente que a própria sombra. Ela sorriu com escárnio, saboreando a expectativa pelo momento em que o teria. Ele não podia correr e tampouco se esconder, não dela.


Ela observou quando ele passou por uma família que ia no sentido contrário, e sua atenção foi substituída, passando para os cinco membros que caminhavam relaxada e preguiçosamente em sua direção.

Os sorrisos a alcançaram aonde ela estava, carregados pelo vento noturno, mas a Morte sabia melhor. Sorrisos ocos e vazios eram tão comuns quanto adolescentes dramáticos; sempre haveria algum Romeu e Julieta chamando por ela por aí.


Os adolescentes em questão, filhos do casal que os usava como desculpa para manter o casamento moribundo quando na verdade apenas estavam confortáveis demais para tentar alguma mudança efetiva, caminhavam um perto do outro enquanto o irmão menor, abraçado desde sua cintura pela mãe servindo de escudo contra a proximidade do marido.


A Morte desejou em silêncio quando eles passaram que ela pudesse consertar as coisas nessa família. Ela poderia fazê-los se importarem um com o outro. Fazê-los enxergar por cima do conforto que o dinheiro oferecia, ver por baixo das aparências e boas maneiras. Mas ainda não era a hora, assim ela os deixou seguir em frente.


Os ruídos da cidade penetravam no ouvido cansados de Morte como uma música fora do ritmo. Bonita, mas desordenada e ela começou a sentir a urgência de algum chamado.

Ela não queria ir ainda.


As próximas pessoas, três jovens bem vestidas e excessivamente maquiadas evocaram a imagem de leoas durante a caça na mente de Morte. Não importa quanto tempo passasse, como as roupas ou os jogos mudassem, ainda haveria jovens tolas iludidas pela promessa de um amor único e lindo.


A Morte continuou acariciando o cãozinho enquanto observava as meninas rirem escandalosamente absorvidas demais em sua conversa fútil e trivial para se aperceberem do estranho espectador ao lado delas. Uma dessas jovens seria sua antes do final da noite.


Então, elas aprenderiam que não eram as únicas caçando. Sorrisos cordiais podem esconder devassidão e convites sedutores na maioria das vezes não passam do selo de uma sentença.


A Morte se levantou pronta para partir, seu pequeno momento tinha chegado ao fim, e o trabalho clamava por ela. A eternidade nunca podia esperar. Ela alisou suas roupas amarrotadas por reflexo e no instante que ia partir ouviu um grunhido baixo.


O vira-lata se enrolou em si mesmo para fugir do frio, e agora que a Morte havia retirado sua mão quente e cessado suas carícias ele sofreria por toda a noite. Ela não poderia deixá-lo ali.


- Venha, vamos comigo. – Ela se abaixou novamente e o tomou carinhosamente no colo, levando-o consigo. Nada mais de fome, miséria ou maus tratos. Nada mais de ser ignorado, chutado e apedrejado. Agora ele pertencia a ela.


Misericórdia.

Sim, é assim que a Morte prefere ser chamada.



Conheça a autora




Quando surgiu o interesse pela arte? Como foi o seu primeiro contato?


Meu primeiro contato foi minha mãe lendo para mim. Eu me lembro que me assustava muito a ideia de que eu aprendesse a ler, mas não soubesse escrever ou vice-versa. Simplesmente não fazia sentido para mim que ao aprender um, eu automaticamente saberia fazer o outro. Ainda não faz, sendo sincera.

Eu sempre amei duas coisas: Livros e música. Minha mãe sempre incentivou muito a leitura em minha casa, assim como a música, mas na sociedade na qual cresci a história era outra. Cresci em uma realidade difícil e a vezes brutal, e os livros e a música foram o escape perfeitos, uma janela enorme para diferentes mundos, eras, culturas.


Como foi a sua relação com a leitura na infância?


Sempre fui uma leitora ávida. Quando criança cheguei ao extremo de ler uns quatro livros diariamente, ao ponto de minha mãe ter que me proibir. Ganhei passe livre para estar na biblioteca, então, simplesmente, deixei de ir às aulas de química, física, matemática e biologia para estar na biblioteca.


Quem você diria que te motivou a iniciar a escrita?


Tive uma professora que me incentivava a escrever, e me pedia contos semanais.

Uma coisa curiosa é que eu fiz vários cursos de idiomas, e essa exposição a outras culturas e à arte em outros idiomas é o que mais enriqueceu minha escrita como um todo.

A habilidade de ler em diferentes idiomas, me deu uma vantagem de realmente experimentar e entender coisas de diferentes pontos de vista. Isso, apesar de inicialmente parecer não ter relevância alguma com a escrita, é o que mais me forjou como escritora.


O que é evoluir como escritora pra você?


Evoluir como escritor é uma jornada pessoal, que não se trata apenas de colocar uma palavra na frente da outra. Claro que existe a parte da técnica, de saber se expressar melhor, construir diálogos etc... mas também reside em entender melhor os aspectos humanos, as emoções e as razões por detrás das ações. À medida que eu evolui como escritora, também o fiz como ser humano, e acho que essa é a melhor parte.


Como você descreveria o papel da escrita na sua vida? O que ela representa?


A habilidade de escrever é para mim uma espécie de super poder infinito. Os fãs do superman que me julguem, mas é muito maior do que voar ou ter visão raio laser. As palavras são uma coisinha que quando você coloca uma na frente da outra, vão formando pessoas, histórias, sentimentos. Nossas palavras influenciam, e portanto somos responsáveis por elas e temos que atuar com a consciência que isso requer.

É uma coisa tão louca ter a capacidade de emocionar, fazer rir, sonhar ou só se esquecer por um momento das coisas deste mundo que às vezes são tão estranhas.

Escrever vai mais além do que apenas me expressar e criar um personagem com uma história legal. É sobre realmente ter a capacidade de trazer a vida algo que estava dentro da tua cabeça, e torná-lo real na mente de outras pessoas.

Voar é bem legal, mas poder viajar para dentro de um livro é muito mais.


Quem você tem como referência?


Nossa, são tantos que nem sei por onde começar. Desde autores nacionais como Pedro Bandeira, Machado de Assis, José de Alencar a Júlio Vernes, Sir Arthur Connan Doyle, Stephanie Meyer, Coleen Hover, Quino, Neil Gaiman, Oscar Wilde...

Uma lista realmente infinita que passei por todos os gêneros. Livro infantis, comics, classicos, fantasia…Meu Deus, eu ia esquecendo de mencionar o Tolkien.

É a mesma coisa de me perguntar qual é a minha música, ou livro preferido. Vou falar e falar e nunca chegar a nenhuma conclusão. Eu sinto que todos os livros (inclusive os péssimos) são uma referência para mim.


Como funciona seu processo criativo?


Como escritora temos que ter em conta vários aspectos técnicos, como por arco de personagem, uso da língua, diálogos, plots (essas são as regras). Geralmente, meu processo começa outlining um livro, e pensando na personalidade de cada personagens e no background. Mas honestamente, eles parecem ter vozes próprias e raramente fazem o que seja que eu haja planejado originalmente.

Quanto mais complexo é o livro, mais livres e dinâmicos são os personagens porque são mais complexos.

Escrever personalidades que tem apenas um traço marcante principal é mais simples, mas também deixa o livro mais superficial.

Uma vez que o livro foi outlined, eu começo a selecionar as partes e escrevo o que seria um enorme rascunho. Logo após isso, vou enchendo o texto. Adicionando detalhes, ambientação (tempo e espaço) características físicas e consertando plot holes.

Logo após isso, começo a etapa de edição ortográfica. E é importante salientar que a maior parte de escrever é editar. É cansativo, exaustivo e assustador, mas isso faz parte do processo de escrita e do processo criativo. Só ter uma ideia boa não é suficiente. Detrás de todo (bom) livro há muito trabalho (e lágrimas).


Você buscou esse processo sozinha? Se não, quem são as pessoas que dão esse suporte ao seu projeto?


Claro que eu não consegui nada disso sozinha. Tenho leitores críticos e betas. São leitores críticos que me acompanham desde o outline até que preencho o livro de detalhes. As capas são maravilhosas porque tenho uma equipe dedicada a isso e elas são as melhores. O que poderia dizer sobre a revisão impecável da minha editora? Ela revisa erros ortográficos (e eventualmente encontra erros em outras coisas também) e questiona cada ponto, virgula, e travessão escritos no livro. Então eu corrijo a correção dela, e ela me devolve a correção da minha correção. As vezes eu sinto que ela me odeia porque me devolve livros com 7 mil erros, mas isso faz com que não hajam erros de ortografia. Então, uma vez que isso está pronto, o livro vai para formatação e diagramação, e dai passa para os meus Arcs (que são pessoas que assinam para ler meus livros antes de que seja nas livrarias) E adivinha? Eles procuram por erros de diagramação e formatação e quando encontram, a edição volta para a autora. Tenho muito a agradecer também a minha gerente de marketing que faz o trabalho mais impecável que já vi.

É bem louco, porque todas essas pessoas que mencionei realmente acreditam nas minhas histórias, e celebram comigo cada revisão, cada estrela, cada leitor chorando por causa dos livros.


Ivanka, o que te levou a escrever em outras línguas?


Essa é a parte mais louca de tudo. Por muito tempo eu estive totalmente desmotivada devido ao cenário nacional do Brasil (tenho fé e vejo que mudanças super positivas estão acontecendo) então, após alguns anos escrevendo só para os meus amigos que nem eram lá muito interessados em ler, decidi que meus personagens sofriam demais, cresciam demais e tinham história bonitas demais para que eu tivesse medo de me expor para o mundo.


Como tem sido a escrita de sua noveleta?


Escrever é uma coisa estranha, porque é algo que eu faço sozinha durante o silencio da madrugada, mas receber feedback diário dos leitores, que se emocionam, vibram, criticam, amam ou odeiam é bem louco.

Se tornou um dos meus maiores prazeres discutir personagens que passaram tantos anos morando apenas na minha cabeça com pessoas de todo o mundo, como se eles realmente fossem reais (quero dizer, para mim eles são…) Eu espero poder fazer isso até o final da minha vida.


Quais são os seus planos futuros?


Eu montei uma equipe e uma noveleta, que é a introdução à série e foi lançada nos USA, Inglaterra e Canada. O segundo livro está sendo esperado. Serão uma série de cinco livros (são todos Young Adult, mas com subgêneros diferentes) e tudo acontece na mesma cidade. No ano que vem começaremos a publicá-los em áudio livro e também em outros idiomas (espanhol, alemão e português).


Se você pudesse dar alguns conselhos para alguém que está iniciando agora, o que diria?


Se mantenha humilde. Isso é o mais fundamental e vai te salvar de muita dor de cabeça.

Se alguém diz que está ruim, pergunte o porquê e ainda que não concorde, trabalhe para melhorar. Não porque você tenha que agradar, mas porque realmente tudo se pode melhorar e se alguém foi legal o suficiente para tirar um pouco do seu tempo para apontar algo no que você pode melhorar, não vejo razão para não fazer.


Construa uma equipe de leitores críticos, que leem com atenção e criticam com sinceridade cada linha que escrevo. Hoje me dia tenho uma equipe profissional e remunerada, mas durante muitos anos não foi assim. Eu simplesmente enviava meu livro pra todo mundo, e pedia um feedback. Algumas pessoas gostaram o suficiente para ler meus livros durante muitos anos. Meu conselho é que procure por pessoas nas quais você possa confiar para dar um feedback sincero (minha mãe por exemplo, não conta ou qualquer pessoa que ache que sou incrível só por respirar). E então, quando for duramente criticado, é questão de respirar fundo, travar a mandíbula e sentar na cadeira para escrever de novo.


Escreva quando ninguém está olhando. Repassar diálogos na cabeça enquanto pega o ônibus, toma banho, está no barzinho com os amigos. Não é fácil. Mas realmente não há como fazer de outra maneira que não seja escrevendo.



Não tenha medo nunca de que alguém roube a sua ideia. Se você leu a parte na qual eu detalhei o trabalhão que dá pra escrever e publicar um livro, se alguém rouba uma ideia minha, publica antes de mim e se torna em um best seller, honestamente nem ficaria brava, porque seguramente já não haveria nada da minha ideia original depois de tanta edição.

Então fique tranquilo, para que alguém passe por todo esse processo, a pessoa realmente tem que acreditar naquilo que escreve e ninguém que haja roubada uma simples ideia irá fazer isso. Ideias por si só não tem realmente nenhum valor, mas se você falar nelas em voz alta o suficiente, seus personagens irão ser cada vez mais reais para você.


Encontre mais sobre a autora nos links abaixo:







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