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Promethea e a magia de Alan Moore, por Rubens Duprat



Um grimório é um livro de magia, ou seja, um livro que ensina a lidar com ocultismo, e Promethea, escrita pelo britânico Alan Moore entre 1999 e 2005, é um grimório em forma de história em quadrinhos. Em seus 32 capítulos, a HQ aborda toda a tradição ocultista ocidental, dedicando um capítulo inteiro a destrinchar os 22 arcanos maiores do Tarô (o capítulo 12) e 11 capítulos só para a Árvore da Vida, sendo um para cada uma das 10 sefirot da Cabalá e mais um para o Abismo (os capítulos 13 a 23), passando também pelos 72 demônios da Goécia, pela magia sexual e, claro, pela filosofia pessoal do autor. Como ele mesmo diz numa entrevista concedida a DeZ Vylenz para o documentário "A Paisagem Mental de Alan Moore", de 2003, "em vez de aborrecer seus amigos com algo banal como uma crise de meia idade", em seu aniversário de 40 anos, em 1993, ele preferiu "aterrorizá-los enlouquecendo completamente e se autoproclamando um mago".


Como assim, um mago? Igual ao Gandalf?

Explicando melhor, Alan Moore acredita que um escritor, ou qualquer tipo de artista, é o mais próximo que existe de um xamã no mundo contemporâneo, pois a arte, como a magia, consiste em manipular símbolos, palavras ou imagens para obter alterações de consciência. Ele ressalta o fato de , em descrições mais antigas, a magia era costumeiramente referenciada como "a Arte", e conclui que, originalmente, todas as áreas da nossa cultura, fossem ciências ou artes, eram território dos xamãs. Com a ascensão das sociedades urbanas, das profissões especializadas, das religiões organizadas, da medicina e, finalmente, da psiquiatria, a magia foi pouco a pouco separada de suas funções sociais, incluindo as funções espirituais, curativas e de investigação da mente, até se limitar a ser lembrada em ordens ocultistas sem relevância para o aprimoramento da humanidade como um todo ou em histórias de fantasia, que só servem para sublinhar o fato da magia ter sido algo relevante apenas no passado.


Ele conta que seu interesse pela magia foi despertado enquanto escrevia a HQ Do Inferno, onde fala sobre Jack, o Estripador. Publicada originalmente de forma seriada entre 1989 e 1996, a HQ traz a seguinte frase: "O único lugar em que deuses incontestavelmente existem é em nossas mentes, onde eles são reais fora do alcance da refutação, em toda sua grandeza e monstruosidade." Foi após escrever essa frase e refletir sobre ela, justamente num período de pesquisas sobre a Maçonaria para a mesma HQ, que ele chegou à conclusão: tornar-se um mago seria a evolução natural de sua carreira, pois só assim alcançaria novos horizontes criativos.


Ao tomar essa decisão, ele concluiu, também, que precisaria de um deus para adorar. Jocosamente, escolheu adorar um deus-cobra do século 2 chamado Glycon, mesmo tendo sido desmascarado como um boneco de ventríloquo, há cerca de dois mil anos, cujo charme destaca uma cabeleira estilosa que, para Moore, lembra Paris Hilton. Ele alega que lhe interessa um deus-cobra puramente como símbolo, pois a cobra pode representar sabedoria, cura ou a própria espiral de nosso DNA, e escolheu Glycon por ser um boneco de ventríloquo, pois é assim que usamos a maioria de nossas divindades, fazendo com que falem o que nós quisermos que falem, e colocando-as de volta na caixa sempre que as coisas saem do controle.


Ao lado de seu melhor e mais antigo amigo, o também quadrinista Steve Moore (sem relação de parentesco), ele então fundou o grupo ocultista The Moon and Serpent Grand Egyptian Theatre of Marvels, passando a fazer performances artísticas de exploração de magia em 1994. As performances envolvem música, monólogos e versos, algumas delas foram lançadas em CD ao longo dos anos.


Steve, quatro anos mais velho do que Alan, foi quem mais influenciou sua teoria e prática mágica, em companhia dos textos de ocultistas famosos como Aleister Crowley e Austin Osman Spare, e foi justamente após uma visita ao amigo em 2002, quando escrevia o capítulo 22 de Promethea, que Alan ouviu uma voz em sua cabeça dizendo que havia finalmente se tornado um mago verdadeiro. Ele relata que começou a explorar as sefirot inferiores da Cabalá algum tempo antes de começar a escrever Promethea, e, à medida em que foi escrevendo a HQ, conforme sua protagonista explorava a Árvore da Vida, sentiu necessidade de experienciar também as sefirot superiores para, assim, poder representá-las de forma autêntica para os leitores. Em sua investigação das sefirot, ele fez uso de meditação, rituais inventados e drogas psicodélicas.


Promethea, uma super-heroína cuja origem remete à magia hermética do Antigo Egito, nasceu de uma vontade de Alan Moore de mostrar que os quadrinhos de super-heróis não precisavam ser sombrios para ser bons. Em Watchmen, sua obra mais famosa, publicada originalmente entre 1986 e 1987 pela DC, ele usou de técnicas literárias avançadas numa narrativa que visava desconstruir os super-heróis, mostrando-os não como paladinos da justiça de moral ilibada, mas como seres humanos complexos. Isso influenciou toda a indústria de quadrinhos do gênero, mas seus imitadores, em geral, se limitavam a criar versões "grim and gritty" (literalmente "sombrio e brutal") de heróis clássicos, passando longe da complexidade de Watchmen.


Assim, nos anos 1990, o que dominava a indústria de quadrinhos de super-heróis era a narrativa "grim and gritty" aliada à estética popularizada pela emergente editora Image, que, fundada por artistas vindos da DC e da Marvel, se destacava por seus quadrinhos quase sem texto, focados em desenhos de página inteira. Afastado do gênero por 5 anos devido a desavenças ligadas aos direitos autorais de Watchmen com a DC, Moore decidiu aceitar o desafio de escrever HQs que agradassem ao público da época, mas sem deixar de lado a profundidade, e, a partir de 1993, escreveu HQs de personagens como Spawn e Supremo para a Image. Uma das companhias que faziam parte da Image era a WildStorm, de Jim Lee, que, então, ofereceu a Moore a oportunidade de ter seu próprio selo dentro da companhia. Moore deu ao selo o nome America’s Best Comics ou ABC, chamou vários artistas de sua confiança para trabalharem com ele na empreitada e, dentro do selo, criou todo um universo ficcional, com personagens inspirados principalmente na pulp fiction e nos quadrinhos das décadas de 1940 a 1960, incluindo Tom Strong e Promethea.


Da mesma forma que Watchmen, as HQs do selo ABC mostram o desenvolvimento lógico de um mundo onde super-heróis realmente existem, e é por isso que, embora a protagonista de Promethea viva no presente, em Nova York, a tecnologia que a cerca é muito mais avançada do que a da verdadeira Nova York da época. Em Promethea, também são destaque os fantásticos desenhos de J. H. Williams III, que mais tarde desenhou Sandman - Prelúdio, e, na versão original, as letras de Todd Klein, provavelmente o melhor letrista dos quadrinhos mundiais, responsável pelas letras de Sandman desde a primeira edição. Klein foi ainda o idealizador das capas de Promethea, quase todas homenageando algum artista, de Winsor McCay e Van Gogh.


Mas a história do selo ABC acabou com uma traição. Sem que Alan Moore soubesse, Jim Lee vendeu a WildStorm, com o selo ABC e tudo, justamente para a DC, a editora para a qual ele havia jurado nunca mais trabalhar! Mesmo assim, como já havia assumido o compromisso com os artistas que faziam parte de seu selo, Moore continuou escrevendo mensalmente as várias revistas do selo, até chegar ao fim de Promethea, que trouxe também o fim de todo aquele universo ficcional, numa história de apocalipse envolvendo todos os personagens. E ficou por isso mesmo, até 2018, quando a DC, novamente contrariando a vontade do criador, simplesmente incorporou a personagem Promethea ao seu universo de super-heróis, introduzindo-a numa história em que a Liga da Justiça enfrenta a vilã Rainha das Fábulas, em Justice League of America 24.


De qualquer forma, a conclusão de Promethea foi, nas palavras de Alan Moore, um instrutivo primeiro passo para que ele e seu amigo Steve começassem a escrever um outro grimório ilustrado, desta vez mais sério e elaborado, chamado The Moon and Serpent Bumper Book of Magic, com o objetivo de apresentar o conhecimento esotérico de uma forma totalmente prática e compreensível. Numa entrevista concedida a Sam Proctor para a revista Pagan Dawn em 2016, Alan diz que, no novo grimório, eles demandam “que os magos modernos se posicionem ao centro da sociedade, ao invés de se esconderem em suas margens, se engajando na ciência, na arte, na política, na filosofia e nas questões sociais, assim reconectando a magia com a população em geral, conforme ela foi inicialmente elaborada para servir e iluminar”. Embora Steve tenha tristemente falecido em 2014, Alan diz, na mesma entrevista, que o grimório The Moon and Serpent Bumper Book of Magic está praticamente concluído, faltando apenas algumas revisões e ilustrações para ser lançado. Até o momento, ainda não foi lançado, mas eu gostaria bastante de ler essa obra dos dois Moores algum dia.


Artigo por Rubens Duprat

Revisão e Edição por Elisa Fonseca


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