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Sereios do ar, por Fabiano Sorbara

Atualizado: 14 de mai. de 2022

Nunca acreditei nas histórias horripilantes sobre sereios do ar. Para mim era tudo invencionice, causo de pescadora. Mesmo minha mãe e irmã jurando ser tudo verdadeiro, eu me mantinha incrédula. Assim fiquei, até encontrar, próximo a Grande Nuvem de Magalhães, o pequeno quimero-celeste enrolado na tarrafa eletrostática.


Colagem digital produzida por Maitê Mendonça

Eu estava prestes a completar quatorze estações secas quando aconteceu o acidente com Amanda. Minha irmã caiu da nave de pesca. Foi engolida pelo espaço. Dona Yolanda, minha mãe, mestre de embarcação, ainda revirou a Via Láctea. O corpo jamais apareceu. Ainda guardo na memória a imagem do meu pai lançando as pétalas de parassóis no cosmo. Um tributo prestado a todas as neo caiçaras que não voltam para casa.


A tragédia me obrigou a abandonar o colégio para assumir o posto vago. Seu Brito, meu pai, foi contrário. A dor de perder uma filha queimava sem trégua no peito. Mamãe não era insensível àquele pesar, mas a vida deixou uma única opção, a pescaria. Diante da angústia de papai, fiz uma promessa: voltar sã e salva. Um juramento que eu mesma temia não cumprir a cada partida do aero-cais.


Sete estações secas passaram. Minha mãe adoeceu. O Mal da Matéria Escura a tornou temporariamente inapta para o trabalho. Neste intervalo fiquei responsável pelo sustento da família. Para nosso bem, a moléstia não a impedia de ir ao Mangue Árido pegar caranguejo-da-sílica. A tarefa, além de ser fonte de renda extra, a ajudava a se sentir útil.


Logo nas primeiras idas ao espaço ficou evidente que o trabalho, para apenas uma pescadora, era inviável. Eu precisava de mais alguém na nave. A notícia se espalhou rapidamente pela Vila do Areial. Daniela, uma jovem beirando treze estações, manifestou interesse em aprender o ofício. Com a temporada de pesca das cavalas-saturno chegando ao fim, não tive tempo de instruir a garota. Ela aprenderia na prática. Deste modo zarpamos, indo para o Atol Dorado, onde as iscas foram lançadas.


Daniela era inteligente, atenta, seguia todas as instruções e fazia muitas perguntas, sinal de quem realmente quer ser pescadora. E como marinheira de primeiro voo, quis saber sobre os sereios do ar, se eles levavam as mulheres para as profundezas do espaço. Respondi que nunca tinha avistado nada, e que o melhor era mudarmos de assunto. Segundo as pescadoras mais velhas, falar das criaturas a bordo da nave de pesca trazia má sorte.


Talvez a crendice tivesse mesmo poder, pois em quase um dia de trabalho, não pegamos nada. Decidi recolher a tralha e voltar. Porém, Daniela avistou um cardume de sardinhas-das-Nebulosas, resolvi ir atrás. Precisava pegar pelo menos algumas para consumo próprio e incentivo à ajudante.


Navegamos até próximo da Grande Nuvem, fora da minha tradicional rota de pesca. Parei na posição exata, acima das sardinhas, disse para lançar a tarrafa. Após o barulho do choque, puxamos a trama para pôr o pescado no interior da nave. Na movimentação, notei uma pequena cauda de escamas enegrecidas e brilho furta-cor entre o prateado das Nebulosas. Intrigada para saber qual espécie seria, liberei logo a rede.


As sardinhas se espalharam pelo convés e um sereio do ar se revelou. No susto peguei o arpão, Daniela pulou para trás, quase caiu da nave. Na hora de golpear, percebi que se tratava de uma criatura infantil. Um ser muito diferente das histórias aterrorizantes contadas pelas pescadoras. Parei o ataque. A julgar pelo corpo sem reações, a criaturinha havia morrido quando recebeu a descarga elétrica da tarrafa.


O sereiozinho tinha um aspecto dócil. Tive dó em ter tirado a vida de uma criança. O rosto era arredondado. O cabelo crespo, aparado nas laterais. O tronco e os braços, apesar de pequenos, eram definidos. Tinha os dedos alongados, com membranas entre eles. A cauda, escura e brilhante, era quase uma extensão da pele negra. Jamais pensei que os quimeros-celestes pudessem ter a minha cor.


Naveguei para casa. A culpa atormentava a razão. A lembrança da morte de Amanda veio à tona. A tristeza pela qual vi meus pais passaram e que também passei. A dor da ausência. O luto massacrante. O porquê? Todos aqueles sentimentos ruins, os parentes do pequenino irão sentir. Com certeza, haverá uma família padecendo da mesma tortura. E eu era a causadora do mal.


Se contrapondo ao meu desânimo estava o entusiasmo de Daniela. Primeira pescaria e uma grande história para contar. O povo da Vila do Areial jamais esqueceria o feito épico. A aventura seria contada por gerações. Nossos nomes lembrados para sempre. Ela bradava para o universo a glória.


Ao entrar na estratosfera terrestre escutei gritos. Olhei Daniela indo pegar o arpão. Preocupada fui imediatamente para o convés. A cauda do sereiozinho tinha se transformado em pernas. A novata estava exasperada. Pedi calma, e que me entregasse a arma. Recusou, alegando ser melhor matar o monstro para não ter problemas quando fosse maior. O impasse durou até surgir a ideia. Amarrei os membros do pequeno. Ainda paralisado o levei para o porão. Afirmei que estávamos seguras. Ele sentia medo. Algo natural para quem passou a vida escutando causos macabros. Expliquei meus motivos de não querer matá-lo e o plano de voltar ao espaço na tentativa de achar a família do quimero. Pedi que não contasse nada a ninguém da Vila.


Ancoramos no aero-cais. Fomos descarregar os pescados. Quando entramos no porão o sereio roía as cordas. Daniela correu. Aos berros, anunciou para todos da plataforma que a aberração estava dentro da nave de pesca. As pescadoras pegaram cordas, redes, arpões e gritavam para matarem a criatura. Fugi com a embarcação, quase por instinto, mas com um quê de pavor.


No espaço, ainda confusa, sem saber se fiz o certo, fui ao porão. Ao abrir a portinhola o sereiozinho voou. Corri para o convés. O quimero estava na frente da nave, resolvi seguí-lo. Passamos pelo Atol Dorado e na entrada da Grande Nuvem avistei, vindo de encontro, outros sereios do ar. O pequeno sorriu para mim.


A família estava reunida novamente. Fechei os olhos, estava em paz. A imagem de Amanda preencheu meus pensamentos. Senti alívio na alma. Senti também uma mordida no pescoço. Caí no piso. Olhei a criaturinha com a boca cheia de sangue. Corri até a cabine e coloquei as turbinas no máximo. Sem conhecer aquela parte do espaço fui de encontro à tempestade solar. Despistei os quimeros-celestes.


Mas, o magnetismo da tormenta danificou os equipamentos eletroeletrônicos da nave de pesca. Estou à deriva, sangrando. Se não for encontrada logo temo que meus pais terão que lançar as pétalas de parassóis no cosmo.


Conheça o autor


Fabiano Sorbara é artista plástico e digital, além de escritor. Suas obras são inspiradas no abstracionismo e no surrealismo. Já seus escritos pairam entre a comédia e o realismo mágico. Participou de algumas antologias, incluindo “Ninguém é feliz no Natal'', da Fa Editorial, e da newsletter Pulpa, da Editora Escambau. Teve, também, destaque com alguns prêmios na categoria microconto.




Fabiano, além de escritor, você é artista. Você diria que suas artes dialogam com sua escrita?

É uma história longa, mas resumindo: a pintura em tela deu um rumo para a minha vida. Comecei a pintar quadros aos 29 anos, e descobri um universo mágico. Com o tempo migrei para a arte digital, tenho explorado obras abstratas e colagens digitais com foco no surrealismo.


Acredito que o diálogo entre as obras visuais e a escrita se dá com essa pegada surreal, principalmente nos contos, que se passam na cidadezinha de Santa Madalena Arrependida, provavelmente meu futuro primeiro livro.


Então conta pra gente sobre sua trajetória literária?

Bom, só me aproximei da literatura aos 36 anos. Parece estranho para quem hoje adora escrever, mas até essa idade eu não possuía o hábito da leitura e a prática da escrita. Lia pouquíssimo e não passava pela minha cabeça me tornar um escritor. Porém, isso mudou repentinamente numa manhã de junho de 2011, dia que perdi minha visão.


De repente eu estava cego e necessitava fazer uma cirurgia na cabeça para a retirada de um abcesso cerebral. Mesmo com o procedimento de urgência, era incerto se eu voltaria a enxergar.


Foram 40 dias no hospital, muito bem amparado por toda equipe de profissionais da saúde. Assim, nasceu uma vontade gigantesca de escrever uma carta de agradecimento. Por isso, quando o psicólogo perguntou se eu desejava algo, pedi para ele passar para o papel minhas palavras. Eu, cego, ditei toda a carta.


Um ano depois, em 2012, minha visão retornou. Aquela vontade de escrever tinha se instalado em mim. Comecei sem o intuito de publicar. À medida que os meses passaram, a ideia de compartilhar meus escritos amadureceu, Então, em 2013, postei meu primeiro texto no Recanto das letras.


De lá para cá tenho aprendido muito, e vivenciado ótimas experiências. Passei por algumas fases, como me dedicar à poesia, aos microcontos e atualmente aos textos maiores.


E onde você tem publicado suas histórias?

Os primeiros textos foram postados no Recanto das Letras. Uma escrita bem amadora, coisa de iniciante, cheia de erros, mas não tenho vergonha desses primeiros passos. Pouco tempo depois, conheci o grupo do Escambau no Facebook e reconheço que muito do meu crescimento se deu pela prática diária da leitura e escrita de microconto nos prêmios realizados pelo coletivo.


Usei também a plataforma Sweek. Infelizmente nesse ano de 2022 as atividades do site foram encerradas. Por lá, desenvolvi contos pequenos e tive reconhecimento por parte dos demais escritores, além de algumas premiações.


Também postei algumas obras em sites e fiz algumas participações em revistas e jornais literários. A plataforma mais recente que utilizei foi a Medium, mas faz tempo que não posto nada lá.


Certo, e atualmente, quais são suas leituras favoritas?

Como disse, eu não tinha o hábito da leitura, sendo assim não tinha referências de escritores. Passei a ler justamente quando comecei a escrever. Li muita gente iniciante antes de ler os famosos. Isso ajudou no aprendizado porque ao não me comparar e nem querer copiar os mestres a minha escrita era instintiva. Claro, depois de um tempo é necessário estudar, absorver e colocar em prática o que foi aprendido.


Atualmente eu leio muita coisa do mercado independente, uma forma de incentivar quem luta e resiste nesse meio. Às vezes, leio livros clássicos. Dos famosos eu cito Machado de Assis (gostaria de escrever como ele) e Ernest Hemingway, “O velho e o mar” é minha obra favorita.


Que tipo de histórias você conta?

Costumo escrever textos de humor, tenho facilidade. Embora não fique preso somente a esse gênero, pois também gosto de ficção científica, fantasia e às vezes misturo tudo.


O que deve torná-las muito interessantes. Você consegue apontar as temáticas que rondam sua escrita?

Observei que minhas obras flertam com alguns aspectos envolvendo a morte. Também gosto de ter críticas sociais embutidas nos contos, quase sempre com o uso do artifício do riso, para tirar o peso da leitura. Estamos enfrentando momentos difíceis, não quero que meu leitor fique mal ao terminar a obra, quero que ele reflita sobre o tema de forma mais agradável ou apenas tenha um momento de diversão, nesse sentido a comédia é fundamental.


Estamos quase finalizando e gostaria de saber se há alguma lição que aprendeu ao longo desse mundo literário?

A escrita trouxe o aprendizado de que é possível externar sentimentos internos e não deixá-los reprimidos. Seria interessante até para quem não vive no mundo literário escrever sobre o seu "eu", mesmo que afinal apague tudo. Expor as próprias ideias é uma excelente forma de autoconhecimento.


E o que vai levar para a vida, disso tudo?

As amizades que fiz nesse mundo da literatura. Conheci pessoas maravilhosas de todos os cantos da nação. Cada uma com sua singularidade, fora do núcleo de convívio. Isso é ótimo, porque o contato com a diversidade traz crescimento pessoal.



Conto de Fabiano Sorbara
Entrevista de Filipo Brazilliano
Edição e revisão de Elisa Fonseca

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