Falar sobre o medo e as mulheres significa falar de uma relação que é – infelizmente – muito íntima. Desde que nascemos, e talvez até antes disso, somos obrigadas a conviver com o medo: medo de ruas vazias; medo dos olhares que lançam na nossa direção; medo de não sermos boas o suficiente…
São incontáveis as situações de perigo enfrentadas por nós, nossas mães, avós, tias, irmãs, amigas, conhecidas. E para conseguirmos encará-las, tivemos que aprender a dançar com o medo.
Se engana, porém, quem pensa que nossa dança é calma, suave ou ritmada.
Quando mexemos nossos pés, nós os colocamos de volta no chão com força, ocupando nossos lugares. Os braços se movem para os lados, assegurando nosso espaço. Enquanto isso, nossas mãos fechadas em punho, sempre erguidas, estão prontas para enfrentarem nossas batalhas.
A arte é o nosso grito de guerra.
A LITERATURA DO MEDO
A relação de força e confiança entre as mulheres e as obras de Horror nasceu no século XVIII. Foi na Era da Razão, no Século das Luzes, que as escritoras encontraram uma forma de retratar a realidade sombria e perigosa a qual eram obrigadas a viver.
Isso porque, em um período dominado por ideias iluministas, que valorizavam a razão e a lógica, a Literatura Gótica nasceu como uma forma de rebelião.
Enquanto a filosofia, a crítica literária e a “alta arte” colocavam o homem e tudo o que podia ser explicado de forma lógica no centro do Universo, o Gótico teve como seu objeto de estudo o lado sombrio do ser humano: evidenciando suas vicissitudes, ele falava sobre medos, anseios e angústias.
O sucesso estrondoso dos romances Góticos impulsionou uma grande expansão no mercado literário. A demanda por obras dessa vertente Literária superou todas as outras, de forma que as editoras necessitavam cada vez mais de autores para produzi-las – e isso mudaria para sempre a relação das mulheres com a escrita e com o medo.
A LITERATURA DO MEDO E AS MULHERES
Poucas pessoas sabem, mas a Literatura Gótica foi essencial para a História das mulheres.
Foi através dela que as mulheres puderam entrar no mercado literário como escritoras profissionais. Fato que, de acordo com a escritora Virginia Woolf, devia ser encarado com mais atenção.
Em primeiro lugar, por criar mais uma possibilidade de profissão para a parcela feminina da sociedade. Por serem considerados de pouco valor intelectual e artístico, os romances Góticos tinham um preço muito inferior em relação aos outros gêneros à venda. O que o fez conquistar uma gama ainda maior de leitores – sendo as mulheres suas principais consumidoras.
Para saciar a avidez dos leitores, as editoras passaram a contratar escritores e escritoras que estivessem dispostos a produzir obras que, muitas vezes, possuíam título e enredo pré-determinados, e que vendessem bem.
Em segundo lugar, essa entrada das mulheres na Literatura Gótica proporcionou um fato ainda mais importante, e é sobre ele que a Virginia Woolf se refere: pela primeira vez na Literatura, as mulheres puderam retratar, ficcionalmente, a realidade que elas viviam.
Até então, a elas cabia apenas a escrita da poesia, desde que, é claro, pertencessem a famílias nobres. Foram poucas as que tiveram coragem de se arriscar e publicaram seus versos. O que as tornou alvo de críticas mordazes.
Por praticamente não ser considerada arte, porém, a Literatura Gótica se viu livre da maioria desses críticos, o que acabou por incentivar as mulheres a escreverem suas obras.
Mais do que isso, deu coragem a elas para relatarem os abusos e os perigos que faziam parte do seu cotidiano.
Donas de uma escrita única, que mesclava o Gótico com elementos do sentimentalismo, outra vertente que também fazia sucesso na época, essas escritoras construíram o que hoje conhecemos como Gótico Feminino. Ann Radcliffe é sua mãe e o principal nome dessa tradição.
GÓTICO FEMININO: UM DOS PRIMEIROS GRITOS DE GUERRA DAS MULHERES
A tradição do Gótico Feminino foi o responsável por consolidar, de uma vez por todas, a importância da Literatura Gótica e assegurar o seu sucesso.
Em suas obras, a figura da mulher não é mais uma presença passiva e secundária na trama, suscetível aos caprichos do vilão. Ao contrário, a protagonista dos romances do Gótico Feminino são heroínas, que lutam para preservarem sua vida e suas virtudes. Ao mesmo tempo que combatem as forças que as ameaçam, elas denunciam a hipocrisia de uma sociedade patriarcal que, ao mesmo tempo que exige certos comportamentos morais em relação às mulheres, alimenta e dá respaldo às atitudes dos vilões góticos. Vilões esses que são seus pais, irmãos, tios, maridos, médicos – homens que detinham o poder sobre essas heroínas assegurados por instituições como a família, o casamento e a Igreja.
O Gótico Feminino é um dos primeiros, senão o primeiro, grito de guerra das mulheres na Literatura.
Dele, outras ramificações nasceram. É o caso, por exemplo, do Terror Feminista, que ocorre também no Cinema: as obras dessa vertente retratam a realidade das mulheres nos dias de hoje.
BEM-VINDAS AO TERRÍFICAS!
Dessa relação tão íntima entre as mulheres e o medo, nascem escritoras brilhantes e talentosíssimas. A Literatura de Horror conta com cada vez mais nomes de mulheres ilustres. E embora estejamos conquistando cada vez mais nossos espaços, ainda existe um longo percurso para conquistarmos a equidade.
Foi pensando nisso que surgiu o desejo de construir uma comunidade para divulgara e valorizar o trabalho das magníficas escritoras de Horror. Nosso desejo é que cada vez mais pessoas conheçam o trabalho incrível que essas mulheres fazem.
As escritoras Bel. Quintilio e Thais Messora, em parceria com a revista Perpétua, dão as boas-vindas a todos aqueles que partilham do mesmo desejo! Vamos embarcar juntos nessa empreitada e fazer ecoar ainda mais alto a potência dessas escritoras!
Segue a gente lá no Instagram e conheça mais o trabalho que estamos fazendo!
Conheça a autora
Bel Quintilio é escritora de Horror, revisora e pesquisadora literária. Possui uma coluna no blog Canto do Gárgula, onde discorre sobre vertentes ligadas ao insólito, e possui um perfil no Instagram dedicado ao terror e assombro. Seu romance de estreia, Céu de Pássaros, foi finalista no “III Prêmio Aberst de Literatura”.
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