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Duna e o mito da fidelidade como requisito, por Vinicius Oliveira Rocha

Atualizado: 22 de nov. de 2021



Denis Villeneuve talvez tenha dirigido a versão definitiva da obra clássica de Frank Herbert, mas não sem suas distinções – ou algumas falhas advindas da fidelidade


(Esse texto contém spoilers de “Duna”, tanto filme quanto livro)



Lançado em 1965, Duna revolucionou a ficção científica e é hoje o livro mais vendido do gênero. Seu autor, Frank Herbert, apresentou um trabalho visionário que entrelaçou política, ecologia, religião, raça, gênero, anti-colonialismo e anti-imperialismo numa obra cujas influências podem ser sentidas em muitas outras que vieram depois. Basta observar a vastidão desértica de Tatooine nos filmes de Star Wars para saber que George Lucas, assim como muitos outros, deve muito a Herbert.


Porém, a influência de Duna é diretamente proporcional à dificuldade em adaptá-lo às telas. Não é para menos: temos um universo onde as máquinas foram abolidas após um conflito denominado “Jihad Butleriana”, uma ambientação medieval onde planetas são feudos das poderosas Casas nobres, uma organização secreta formada apenas por mulheres que tem cruzado as linhagens destas Casas para obter uma espécie de messias (chamado de Kwisatz Haderach); as viagens interplanetárias são controladas por uma Guilda Espacial e o combustível de suas naves vem da “especiaria”, ou menange, uma substância produzida apenas no planeta de Arrakis – também conhecido como Duna – através de criaturas gigantescas chamadas de vermes de areia, as quais são adoradas pelo povo nativo do planeta, os fremen, que também aguardam a chegada de um salvador vindo de outro mundo.


Entendeu agora por que foram precisos 56 anos para uma adaptação minimamente decente do livro?


Contudo, Villeneuve não é o primeiro a tentar trazer Duna às telonas. Na década de 70 o diretor chileno Alejandro Jorodowsky reuniu uma equipe que incluía Pink Floyd na trilha sonora, H.R. Giger (conhecido por criar o design do Alien e pela capa do disco “Brain Salad Surgery” do trio Emerson, Lake & Palmer) para as artes conceituais e um elenco com nomes como Orson Welles, Mick Jagger e Salvador Dalí (sim). Ninguém em Hollywood topou financiar essa loucura, restando apenas imaginar o que teria saído da mente de Jorodowsky. Uma década depois, foi a vez de David Lynch, enfim, dirigir uma adaptação do livro, mas seu filme foi tão massacrado na bilheteria e pela crítica que constitui o ponto mais baixo da carreira do diretor, o qual até hoje não esconde seu desprezo pela obra.


Corta para 2016, com o anúncio de que Villeneuve dirigia uma nova versão do livro. Emergindo do sucesso com seu primeiro sci-fi, A Chegada (e ele ainda entregaria no ano seguinte Blade Runner 2049, que provavelmente está no meu top 5 de filmes favoritos da vida), o diretor franco-canadense frisou desde o começo a necessidade de adaptar Duna em duas partes, de modo a se manter o mais fiel possível ao material original. Mesmo com a segunda parte condicionada apenas ao sucesso da primeira – felizmente ela foi confirmada no último dia 26/10 –, é de se admirar a coragem e o esforço postos por ele para trazer o universo de Frank Herbert mais uma vez à vida, dessa vez do jeito certo.


Desde os primeiros minutos de Duna é possível perceber o quanto o coração de Villeneuve está neste filme; não é nenhuma surpresa saber que o livro é uma paixão sua desde a adolescência. Discordo dos detratores que o consideram um cineasta frio, pois em todos os filmes que assisti dele até o momento vejo emoções específicas sendo trazidas à tona, mas sempre conjugadas a uma racionalidade e lógica que permeiam sua carreira. Além disso, o próprio livro não é exatamente uma odisseia de sentimentos: Paul Atreides, o nosso protagonista, é muitas vezes mostrado como uma figura distante, desapaixonada e com a qual é difícil criar um vínculo, embora seja um personagem fascinante (e um estudo interessantíssimo do arquétipo do Herói, tal qual preconizado por Joseph Campbell, especialmente por subverter esse tropo em diversos momentos do livro e de suas continuações). Não à toa uma das citações mais famosas da obra é a Litania Contra o Medo, uma prece recitada pelas Bene Gesserit, a misteriosa ordem feminina que atua nas sombras do Império e da qual Jessica, a mãe de Paul, faz parte:

Eu não temerei. O medo é o assassino da mente. O medo é a morte pequena que traz a total obliteração. Eu enfrentarei meu medo. Permitirei que ele passe sobre mim e através de mim. E quando houver passado voltar e meu olhar interior para ver sua trilha. Para onde o medo se foi, não haverá nada. Só eu restarei.

Essa paixão e reverência de Villeneuve, contudo, não vêm sem alguns riscos. Ao adaptar a primeira metade do livro – justamente a mais introdutória e preparatória – ele faz um blockbuster atipicamente lento e meditativo, que mesmo com algumas sequências mais tensas e explosivas, as coloca espaçadamente no decorrer dos seus 156 minutos de duração. Não à toa, muitas das críticas que vi ao filme o definem como “arrastado” ou “chato”. Para quem já viu outros filmes do diretor, essa lentidão não é novidade. Além do mais, o próprio livro não é conhecido por seu ritmo intenso ou frenético, contando ele mesmo com sequências de ação mais esparsas, sendo muito mais fundamentado no desenvolvimento de seus personagens e suas reações frente aos ambientes em que são postos.


Ao mesmo tempo – e sei que parecerei contraditório aqui – Villeneuve e os co-roteiristas, Eric Roth e Jon Spaiths, tomam algumas liberdades quanto à obra original que tanto reforçam as principais diferenças nesta adaptação quanto a excessiva fidelidade à qual ela se detém. Entendo os críticos e detratores do filme que reclamam por ele não ter um final, fruto justamente dessa divisão em duas partes.


De imediato, meu pensamento vai para a trilogia do Senhor dos Anéis, tanto os livros quanto os filmes. As obras originais de Tolkien são bastante conhecidas pelos seus finais anti-climáticos, algo modificado ou atenuado por Peter Jackson nas adaptações. Tome, por exemplo, o final do livro A Sociedade do Anel: Frodo abandonando a Sociedade para partir numa missão solitária para destruir o Anel, sendo acompanhado apenas de seu fiel amigo Sam. No filme, temos o adicional da morte de Boromir, que na verdade é a cena de abertura do livro As Duas Torres. Mesmo sendo uma sequência menos intensa que a batalha entre Gandalf e o Balrog ocorrida minutos antes, não deixa de ser um final emocionalmente apropriado para o filme, mesmo adiantando algo que só seria visto no começo do filme seguinte caso se buscasse uma adaptação ao pé da letra.


Em Duna, o equivalente a Gandalf vs Balrog é a queda dos Atreides para os Harkonnen e os Sadukar; e o equivalente à morte de Boromir são as mortes de Duncan Idaho e Liet Kynes. Porém, o filme vai além e adiciona não apenas o encontro de Paul e Jessica com os fremen, como sua luta e vitória sobre Jamis, que enfim lhe confere a transformação no Kwisatz Haderach. Enquanto espectador, sinto falta nessa cena de um peso que a transforme num clímax digno ao filme; porém, quando olho para a proposta do filme em narrar seus eventos através e a partir de Paul, vejo, nessa mesma cena, a transformação simbólica pela qual o personagem passa. Isso resolve o problema do anti-clímax? Não, mas é coerente com a própria proposta do filme.


Chega ser paradoxal que Duna conjugue uma produção e escala monumentais – poucas vezes me senti tão oprimido e diminuto vendo um filme, diante da imensidão das naves, dos planetas e dos vermes de areia – com uma narrativa tão intimista. E é aqui que reside a maior diferença em relação ao livro: se neste vemos diversos núcleos para além do protagonismo de Paul e como eles vão se entrelaçando numa narrativa maior, na adaptação estamos ao lado do personagem em quase todas as cenas, com pouquíssimas delas mostrando os demais núcleos. Por um lado, isso enfatiza o crescimento do protagonista (e aqui dou meus parabéns a Timothée Chalamet, um ator geralmente criticado por sua “falta de expressão”, por dar conta de tanta responsabilidade), mas por outro, acaba sacrificando muito do espaço dos coadjuvantes. É compreensível que um filme não consiga comportar todas as subtramas de um livro, mas aqui e ali vejo como essa perda de espaço acaba prejudicando um pouco a narrativa.


A meu ver, três personagens em particular sofrem com essas mudanças. O primeiro é Thufir Hawat, um Mentat (espécie de “computador humano”) dos Atreides. Tanto ele quanto Piter de Vries, o Mentat dos Harkonnen, recebem significativo espaço na primeira parte do livro, especialmente por Hawat substituir de Vries quando este é morto por Leto, o pai de Paul, em meio ao ataque dos Harkonnen. Já o segundo é o Dr. Wellington Yueh, médico dos Atreides que os trai por ter sua esposa nas mãos dos Harkonnen. No filme, sua traição é revelada apenas quando ele envenena Leto, mas antes disso o personagem pouco aparece, de modo que mal sentimos o impacto de ser ele o traidor, enquanto o livro nos priva do choque de sua traição por revelar desde o início o que ele fará, permitindo também compreendermos melhor suas motivações e sua tragédia. Por fim, Liet Kynes, Ecologista Imperial (e que no livro é um homem) também perde considerável espaço, mesmo com o papel importante que possui junto aos fremen e aos governantes de Arrakis. No livro, ele se mostra inicialmente desconfiado dos Atreides, mas vai aos poucos sendo atraído pelos esforços de Leto e depois de Paul, ao ponto de compartilhar com eles seus planos para terraformar Arrakis de modo que o planeta se torne cada vez menos desértico e mais habitável; além disso, é o pai de Chani (interesse amoroso de Paul), algo que nem é mesmo sugerido no filme. Kynes é meu personagem favorito do livro e embora a atriz Sharon Duncan-Brewster faça uma ótima interpretação no filme, é um pouco decepcionante ver seu papel ser diminuído.


Apesar dessas mudanças, Duna consegue no geral transpor, de maneira eficiente e mais que digna, a visão proposta por Frank Herbert em seu livro, mesmo dentro de uma abordagem particularmente intimista e que evita um pouco das esquisitices da obra original – embora tenha ouvido relatos de pessoas que nunca leram o livro se sentindo confusas com a profusão de conceitos e termos que tornam esse universo tão único. Mesmo às vezes perigando rumar a uma fidelidade excessiva, que mais poderia atrapalhar do que ajudar a narrativa que construiu, Denis Villeneuve fez diversas alterações que podem desagradar os mais puristas, mas que fazem sentido dentro da proposta apresentada e que ajudam a tornar o filme mais “palatável” ao público, sem precisar perder sua essência.


Como um amigo meu disse, Duna está em algum lugar entre Blade Runner (a ficção científica “cult”) e Star Wars (a ficção científica “pop”). E no fim das contas, com toda a liberdade que teve em mãos, Villeneuve não deixou de entender as diferenças entre as linguagens, literária e cinematográfica, entregando, assim, um filme que honra o material no qual se baseia, mas não deixa de ser uma obra de destaque em seu próprio direito – e que tem tudo para marcar o cinema, tanto quanto o livro marcou a literatura.


Artigo escrito por Vinicius Rocha

Edição e revisão por Elisa Fonseca

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